Mario Vargas Llosa considera Anne Applebaum “uma das melhores jornalistas dos tempos atuais”, autora de artigos e livros escritos com “rigor histórico, elegância e imparcialidade”. Anne é americana e há quase 30 anos mora na Polônia – é casada com o político de centro-direita Radoslaw Sikorski, integrante do Parlamento Europeu. A maioria de seus livros trata dos horrores do comunismo, os gulags e a fome na Ucrânia. Em 2020, escreveu uma alentada obra sobre a onda de populismo dos últimos cinco anos. O Crepúsculo da Democracia (Editora Record) é um livro narrado em primeira pessoa que envolve basicamente as experiências da autora na Polônia, Hungria, Inglaterra e nos EUA e os efeitos da radicalização decorrente da crise das democracias liberais. Anne será uma das conferencistas do Fronteiras do Pensamento, em setembro. De Varsóvia, por videochamada, falou sobre sobre o tema do evento neste ano, a reconexão do pós-pandemia, os desafios atuais para a democracia e o papel das redes sociais nas relações humanas.
O tema do Fronteiras do Pensamento neste ano é a reconexão no pós-pandemia. Como se reconectar à medida que nós parecemos estar mais divididos do que nunca?
Há tantas pessoas tirando lições diferentes da pandemia que eu até fico confusa. Acho que, em certo aspecto, a crise sanitária mostrou como as pessoas em geral estão conectadas. Em primeiro lugar, o vírus afetou todos os países e muitas teorias surgiram no princípio sobre quais nações seriam mais ou menos atingidas, as mais ricas, as menos ricas, e nada disso se provou ser verdadeiro. Em segundo lugar, as vacinas, solução final para a pandemia, são fruto de um esforço científico global, de diferentes partes do mundo. Tenho um sentimento de que a pandemia vai significar o que quisermos que ela signifique, depende da forma como você olha para a realidade.
Houve negação à vacina. Da mesma forma, setores da sociedade se negaram a aceitar a gravidade da pandemia. Em países como o Brasil, o sentimento é de que a polarização ficou ainda mais agravada nessa crise.
Sim, isso é verdade, Em países nos quais há políticos que parecem ter tendência à busca de ganhos por meio da desinformação, vimos crescer, com evidência, o nível de desconfiança da população. Principalmente a experiência de lockdowns pode ter deixado a impressão de que governos estavam mentido à população. Agora, é muito cedo para dizer, mas falando em geral, países que tiveram menos mortes no período foram aqueles nos quais há mais confiança na informação científica e na ciência. Eu poderia citar dois exemplos dessas nações: Coreia do Sul e Nova Zelândia. Em países nos quais houve grande investimento em desinformação e aposta na desconfiança, a reação contra medidas restritivas foi enorme. Mas não tenho certeza se a pandemia criou isso. Acho que ela exacerbou algo que já existia. É certo também que há muita gente tentando tirar vantagem dessa confusão. Há evidências da atuação da Rússia financiando os movimentos antivacina nos Estados Unidos e na Europa, por exemplo.
Sua carreira como escritora é marcada por pesquisar e retratar a história dos gulags, da fome na Ucrânia e do efeitos nefastos do comunismo no leste europeu. Por que a opção, no mais novo livro, de falar de algo atual e que envolve populismo e os riscos à democracia?
Lá por 2015, 2016, me dei conta de que estava vivendo num período muito importante de transformação política e eu era testemunha disso tudo. Vi a transformação ocorrer em mais de um país. Vi a radicalização das pessoas que eu conhecia, meus amigos, inclusive. Decidi escrever sobre isso de um modo diferente do que adoto para escrever livros de história. Se você escreve um livro de história, mesmo que seja sobre os gulags, por exemplo, você olha a história sob perspectivas diferentes, lê arquivos, pesquisa memórias, relatos, tenta entender o que o Stálin dizia sobre aquilo, olha até o lado dos guardas dos gulags. O novo livro eu não pretendo que seja uma visão objetiva dos últimos anos. Então, foi em primeira pessoa. É a minha perspectiva. E percebi que era um momento em que uma mudança histórica estava em curso. Como eu tenho vida profissional em vários países, vi isso acontecendo simultaneamente em várias partes.
Países que tiveram menos mortes na pandemia foram aqueles nos quais há mais confiança na ciência. Em países nos quais houve grande investimento em desinformação e aposta na desconfiança, a reação contra medidas restritivas foi enorme.
No livro, há um episódio interessante. No Réveillon de 2000, você e sua família fizeram uma festa para dezenas de amigos. Vinte anos depois, metade dessas pessoas mal pode se ver na frente. O que houve?
Foi nessa casa onde estou agora, inclusive. Contei essa história porque muitas vezes uma festa representa a união de pessoas que têm afinidade. Metade daquelas pessoas não fala mais com a outra metade não por desavenças pessoais, e são jornalistas, políticos, escritores e intelectuais. Alguns se tornaram radicais e se moveram para essa posição que pode ser classificada como proto-autoritária de extrema-direita. Outra metade se manteve mais ou menos onde estava 20 anos atrás, que você pode chamar de centro-direita, pessoas que ainda acreditam nas possibilidades da democracia. O livro é, basicamente, sobre isso. E não há uma única explicação para esse fenômeno. Uma coisa que provavelmente une todos eles é um senso de decepção. Alguma coisa aconteceu de uma forma que eles não esperavam ser assim. Tanto o país de cada um não seguiu o caminho que imaginavam ou a carreira deles não foi bem-sucedida. A radicalização da política surge a partir de decepções. As coisas acontecem não do jeito que você acha que deveriam ser, então você quer acabar com tudo. E não importa se é o radicalismo de direita ou de esquerda. Meus livros anteriores são basicamente sobre radicais de esquerda, então me sinto à vontade para falar de ambos.
Você descreve a cartilha populista que marca a política em países como Polônia, Hungria e EUA de Trump. Mas isso também ocorre na Venezuela, por exemplo. Prova que o radicalismo é igual, seja de direita ou esquerda?
Não é exatamente a mesma coisa, não quero ser simplista. Mas eles usam as mesmas táticas. A linguagem do Hugo Chávez é a mesma se comparada a pessoas como Vicktor Orbán (primeiro-ministro da Hungria). Atacam o Judiciário, a imprensa livre e, acima de tudo, a linguagem que usam contra os oponentes é similar. O jeito que eles se descrevem: “Sou o líder das pessoas verdadeiras, das pessoas boas e os verdadeiros patriotas me apoiam, e nossos inimigos políticos são estrangeiros, as elites, o mercado. Eles não têm o poder legal de governar, só nós temos esse poder”. Esse tipo de fala é uma pista para levar à população a crença de que o governante tem o poder de destruir as instituições. Nesse tipo de ambiente, não se tolera um tipo de instituição neutra, como uma corte que preserve a regra da lei. Esse tipo de discurso quer fazer crer que, se você não está no meu lado, está contra. E, se você está contra, é um inimigo, um traidor. Os caminhos para desttruir o Estado são os mesmos, seja na Venezuela ou na Hungria.
No seu livro, você descreve um aspecto muito explorado por líderes populistas: a nostalgia. Como isso se aplica no populismo que vemos atualmente?
É um tipo de sentimento muito comum, que explora uma ideia simples de que existiu um passado melhor, que no passado nós fomos governados por grandes estadistas e agora nós temos esses democratas incompetentes. Esse é o tipo de coisa comum de se ouvir na direita e na esquerda. O sentimento de nostalgia tem estado muito presente nos discursos de políticos populistas. Aliado a isso, você tem o uso das mais variadas formas de teorias da conspiração. Essa é uma tática que os bolcheviques usaram, Hitler usou, Trump idem. É um caminho conhecido para reivindicar poder absoluto. Se você consegue convencer as pessoas de que você é governado por forças misteriosas, pessoas que você não consegue ver, trata-se de outra forma de exercer um caminho do autoritarismo.
Qual é a força desse movimento considerando-se que Trump perdeu a eleição, o partido polonês Lei e Justiça venceu o último pleito por margem pequena e há fortes sinais de enfraquecimento de movimentos radicais na Alemanha e na Itália? Seria uma virada?
Nunca há uma virada no sentido de que essas ideias sempre podem ser retomadas. Nas últimas décadas, a democracia foi muito complacente porque nós, de forma geral, assumimos que a democracia liberal nunca sofreria retrocessos. Nunca nos sentimos na obrigação de fazer muita coisa para preservar a democracia liberal. A gente deixava a política para os profissionais e o restante de nós podia se envolver com outras coisas, como fazer dinheiro, escrever livros. Essa foi uma atitude incorreta, porque, na verdade, a democracia ainda é muito frágil. É extremamente importante que possamos manter na nossa cabeça que a continuidade do sistema democrático depende da preocupação permanente de todos.
O que se pode esperar para o futuro da democracia liberal?
Nem sombrio, tampouco muito promissor. Mas vai requerer de todos muitos esforços para que sociedades abertas, como nos acostumamos a ter, possam continuar assim. Acho que essa realidade pode e deve continuar a ser assim, pois eu vejo muito entusiasmo com relação a isso.
Já é possível medir o legado de Trump?
Não estou certa de que a era Trump terminou. Trump foi bem-sucedido ao criar uma bolha de informação cheia de pessoas dispostas a acreditar no que leem no Facebook ou no Instagram do que aquilo que é dito pelos médicos, por especialistas, pela imprensa e até mesmo por líderes religiosos. Acredite, ouvi de líderes religiosos que eles tinham perdido a influência sobre as pessoas que frequentam suas igrejas porque essas pessoas passaram a ser bombardeadas o tempo todo por um tipo de mensagem específica. Outro dia ouvi a história de uma enfermeira nos EUA que faz um trabalho comunitário muito bonito, que era reconhecida pela comunidade, mas na hora de se vacinar contra o coronavírus, ninguém queria acreditar nela. É esse tipo de coisa que ainda enfrentamos.
As grandes redes de tecnologia têm muita responsabilidade (no avanço da desinformação). Conversas civilizadas, debates em alto nível, racionalidade: isso não tem prioridade na formulação dos algoritmos.
Qual a responsabilidade das grandes empresas de tecnologia como Facebook, por exemplo?
Eles têm muita responsabilidade. As redes se tornaram o meio principal de informação para muita gente. O que mais me preocupa atualmente não é só o que é escrito, mas a forma como as redes são concebidas, que têm o objetivo de atender a um propósito, que é o de manter as pessoas online. E, se você se mantém conectado, certamente vai deparar com todo tipo de emoção, de raiva, de divisão, e isso é tudo que se espalha com facilidade. Conversas civilizadas, debates em alto nível, racionalidade: isso não tem prioridade na formulação dos algoritmos. Regular a internet de um jeito que encoraja esse tipo de comportamento acho que seria uma maneira de começar uma transformação. Isso faria uma grande diferença.
Como se faz isso sem tolher a liberdade de expressão?
Não estou falando em bloquear ou eliminar pessoas das redes, mas em reparar um sistema que possa promover conversas civilizadas. E isso é tecnologicamente possível.
Uma das ferramentas do populismo é desacreditar a imprensa. E isso é feito, também, pelas redes. Qual é o papel da imprensa nesse debate? como fazer a cobertura de governos que combatem a imprensa independente?
É um assunto muito difícil e não há resposta fácil. Tem um professor de jornalismo dos EUA, meu amigo, que costuma fazer a seguinte comparação: a cobertura da imprensa precisa ser como um “sanduíche da verdade”. Por exemplo, se algo acontece, você diz que aconteceu, então você descreve qual é a mentira do governo e daí você encerra dizendo mais uma vez qual é a verdade. Em outras palavras: você reporta o que o governante diz, mas coloca no contexto do que realmente é verdade. Tenho pensado muito no que representa a neutralidade hoje. Não se pode fazer uma reportagem sobre algo que não seja a verdade. Então, você precisa falar a verdade sempre, sem parecer que está fazendo isso porque é contra o governo. Como eu disse, não tem resposta fácil, mas vale a pena permanentemente lembrar que o trabalho do jornalista é estar mais próximo possível da verdade.
Nas últimas décadas, a democracia foi muito complacente porque nós, de forma geral, assumimos que a democracia liberal nunca sofreria retrocessos. Essa foi uma atitude incorreta, porque, na verdade, a democracia ainda é muito frágil.
Qual é o papel da Rússia na indústria de propagação de fake news e como o país tem usado a internet para minar democracias?
Isso é algo que os russos vêm tentando entender há muito tempo. Há precedentes históricos na era soviética, quando procuraram espalhar mentiras. Uma delas, inclusive, muito famosa, é a de que a CIA inventou a aids. Os soviéticos tinham um projeto para vender essa ideia ao mundo, usando supostos cientistas. Levou muitos anos para desmascarar a mentira, e isso hoje pode ser feito rapidamente. Acho que os russos foram os primeiros a entender como essas coisas funcionam. E, mais recentemente, foram os primeiros a criar o ecossistema de redes e fake websites que fazem ecoar outros sites e ideias que se replicam em uma velocidade espantosa. Nos países vizinhos, como a Ucrânia, eles fazem isso há mais tempo. Obviamente, o exemplo mais conhecido é o papel que prestaram na desinformação na eleição presidencial dos EUA em 2016. Mas vai além: eles têm promovido muita ação de desinformação sobre vacina em vários países. O objetivo é sempre o mesmo, desestabilizar democracias e promover movimentos antidemocráticos radicais.
Se as correntes democratas perderam credibilidade para essa massa, o que dizer dos conservadores? Você conhece bem o partido conservador britânico (Tory). Já disse que, em condições normais, uma parlamentar como Thereza May nunca chegaria ao cargo de primeira-ministra.
Nem Boris Johnson (o atual primeiro-ministro). Sem o Brexit, ele não chegaria lá. Aliás, o que o Brexit fez foi dividir o país de uma forma que se tornou muito vantajosa para o surgimento de políticos radicais. Nem todos eles são inteligentes o suficiente para notar isso, mas alguns, sim. E isso é o que esses políticos vinham tentando fazer desde o início. O advento do Brexit foi também uma tentativa de dominar o partido conservador. Os tories de hoje são muito diferentes do que eram, pela linguagem que usam e pelo jeito de fazer política, irreconhecível se comparado ao partido tradicional, de John Major e de Margaret Thatcher.
Anne Applebaum no Fronteiras
- A jornalista e escritora estará no Fronteiras do Pensamento 2021 no dia 29 de setembro.
- Os demais conferencistas do evento são Jared Diamond (25/8), Steven Pinker (8/9), Niall Ferguson (13/10), Margaret Atwood (27/10), Yuval Harari (10/11), Carl Hart (24/11) e Pavan Sukhdev (8/12).
- O tema das conferências, neste ano, é A Era da Reconexão. A inscrição pode ser realizada em fronteiras.com.
- Há descontos não cumulativos e as vagas são limitadas. Todas as conferências proferidas em língua estrangeira são legendadas em português e podem ser revistas pelos participantes.
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