Já perguntaram várias vezes por que esta coluna não trata de palavras da gíria. A resposta é muito simples: a gíria é uma área da linguagem que não tem permanência; ela é tão fugaz e, pior ainda, tão veloz, que muitas vezes o que uma palavra valia no sábado deixou de valer na segunda-feira. Escrever sobre elas lembra o comovente trabalho de quem faz aqueles castelos na areia que as ondas vão apagar assim que forem concluídos, se não antes.
Na verdade, quase todas são palavras legítimas, algumas já velhuscas, outras do tempo em que Adão escrevia a Bíblia; a "novidade" da gíria é apenas o sentido com que são empregadas. Como nós outros: podemos mudar de roupa, de peso, de corte de cabelo e até de sexo, mas vamos continuar a funcionar eternamente como o mesmo organismo que a Natureza deu aos humanos. Por isso, mesmo não entendendo muito de gíria, estou habilitado a responder à leitora de São Luís, do Maranhão, que assina com o bonito nome de Lourença: "Professor, nas redes hoje só se fala em lacração, mas eu gostaria de saber se o certo não seria lacreação".
Prezada Lourença: a resposta é não — e explico por quê. As palavras derivadas são geradas dentro dos mesmos princípios genéticos que regulam os seres vivos: oncinhas só podem nascer de onças, pinguinzinhos de pinguins. Ora, os incontáveis substantivos derivados com o sufixo –ção só podem nascer de verbos: remover, remoção; absolver, absolvição; lacrar, lacração — ou baldear, baldeação; acarear, acareação; chatear, chateação. Como vês, uma forma como *lacreação só poderia nascer de *lacrear — que não existe.
Aproveito o texto da tua mensagem para comentar o destino do vocábulo rede. Paulo Rónai, húngaro de nascimento, fugiu ao horror nazista e veio enriquecer o Brasil com sua cultura e sua erudição. Entre outras coisas, ele coordenou a monumental tradução da Comédia Humana, de Balzac, o que dá à nossa antiga Editora Globo, de Porto Alegre, um lugar de honra no museu do escritor em Paris, ao lado das raras edições completas da Comédia existentes no planeta.
Rónai conta que, ainda morando na Hungria, já traduzia poetas portugueses e brasileiros, mas estranhava certos vocábulos que só foi entender completamente quando chegou aqui. O primeiro era morro, onipresente em nossa poesia e em nosso cancioneiro popular, sempre associado à vida triste e miserável — o que era estranho para ele, que vinha de um continente em que os lugares mais elevados sempre tinham sido um privilégio da nobreza e da alta burguesia. Ao chegar ao Rio de Janeiro, no entanto, entendeu tudo já no primeiro dia.
O outro vocábulo era rede; o fato de nossos poetas cismarem na rede, sonharem na rede era um mistério para ele. Como não poderia se tratar de rede de pesca, imaginou que a palavra estivesse sendo usado em sentido metafórico, algo assim como a rede de pensamentos, a rede de vagas sensações. Só aqui foi compreender que nossos poetas gostavam mesmo é de divagar na horizontal...
Neste séc. 21 a palavra rede, especialmente usada no plural, ganhou outro importante sentido. Frases como "Ela passa o dia inteiro lidando nas redes" são imediatamente decifradas por nós, que acionamos automaticamente o seletor de significados — mas serão enigmáticas para um tradutor do futuro, que terá de avaliar muito bem o contexto para descobrir de que diabo se está falando.