Começo este novo ano respondendo por escrito a uma consulta que me foi feita de boca: num churrasco de turma, na antevéspera do Natal, um velho amigo, enquanto esperávamos o assado ficar pronto, aproveitou para tirar uma casquinha: por que agora pegaram de falar "por uma Porto Alegre melhor", "a minha Porto Alegre"? Que ele lembrasse, sempre tinha sido masculino – e diante da minha cara de incredulidade, citou, meio cantando, a abertura de uma música do grande Noel Guarany, que ele sabe que eu respeito: "Adeus, adeus, meu Porto Alegre ingrato, vou me embora desta terra morar no meio do mato". "Explica aí!", arrematou. "Noel está errado?". A pergunta era boa, mas a ocasião era péssima, porque acabavam de tirar da grelha um matambrezinho de porco e começou um salve-se-quem-puder em torno daquela mesa. Minha promessa de responder por aqui, em letra impressa, deixou-o satisfeito — com uma ressalva: "Só não bota o meu nome!".
Sempre usei o feminino, mas uma breve passada no Google (dei uma googleada, palavra já corriqueira) e encontrei mais de 100.000 ocorrências de "um Porto Alegre". É claro que no meio havia exemplos literários que aproveitavam o jogo de duplo sentido entre o Porto que faz parte do nome da cidade e a ideia de um porto que é alegre. Por exemplo, Caetano Veloso escreve (e canta) "Um porto alegre é bem mais que um seguro"; Tabajara Ruas tem um livro de crônicas intitulado "Um Porto Alegre".
Em princípio, os nomes de cidades, em nosso idioma, são femininos; podemos constatar isso trocando o X pelo nome de qualquer cidade na frase "Queremos uma X mais bonita": uma Caxias mais bonita, uma Gramado mais bonita, uma Camboriú mais bonita, e assim por diante. Aqui, no entanto, muitos falantes terminam usando a concordância no masculino, certamente atraídos pelo gênero do substantivo. O caso clássico é Recife, que divide a preferência dos usuários (a Recife antiga, o Recife antigo). No caso de Porto Alegre, até mesmo um intelectual do quilate de Augusto Meyer optou pelo masculino: "Conheci um Porto Alegre fabuloso, regado a sarjetas de água verde, coberto de claraboias e beirais".
Dúvida semelhante já foi tratada aqui com relação a Paris: A Paris de hoje ou O Paris de hoje? Paris moderna ou Paris moderno?. Em nosso idioma, os grandes mestres da tradição literária formam duas torcidas distintas. Entre outros, optam pelo masculino o padre Vieira ("no mesmo Paris"), Eça de Queirós ("com conhecimento de todo o Paris", "Oh, este Paris, Jacinto, este teu Paris!", "aquele Paris ainda agitado", "neste velho Paris"), José de Alencar ("Fizeram do Rio de Janeiro um pequeno Paris de bulevar"). Optam pelo feminino Joaquim Nabuco ("essa impressão de arte que corre por cima da velha Paris toda como um friso grego") e Coelho Neto ("Escolheu uma rua da velha Paris, apertada e sombria"). Aliás, esta indefinição também está presente no próprio Francês. De um lado, De Gaulle, no seu famoso discurso na liberação de Paris, em agosto de 1944, fala de "Paris ultrajado, Paris destroçado, Paris martirizado, mas Paris libertado pelas próprias mãos". Do outro lado, a famosa Mistinguett já cantava, em 1926, "Paris, reine du monde/ Paris c'est une blonde" — o que, sem o ritmo e a rima originais, vem dar em vernáculo algo como "Paris, rainha do mundo/Paris é uma loira". Como podes ver, caro amigo, tanto aqui, quanto em Portugal ou na França, esta não é uma daquelas questões do tipo pão, pão; queijo, queijo — para desespero daqueles que ainda não entenderam que a dinâmica de uma língua viva admite que convivam lado a lado várias formas igualmente corretas.
Para os que gostam de escrever — A boa notícia deste verão são as três oficinas de criação que nosso caríssimo Pedro Gonzaga vai ministrar na semana que vem — todas on-line, com dois encontros cada uma. O variado cardápio permite escolher entre Crônica, Poesia ou uma originalíssima oficina sobre a criação de Fábulas de Animais. Todas as informações podem ser encontradas em www.pedrogonzaga.com/oficinasdeverao.