O leitor G. Faria, de Porto Alegre, começa agradecendo pelo conhecimento compartilhado aqui na ZH e faz, em seguida, uma pergunta pouco habitual nesta coluna: "Há algum tempo, professor, tenho essa dúvida: se eu levasse uma mordida de um cachorro e gritasse "socorro!" numa casa com muitos cachorros, alguém viria me prestar os primeiros socorros. Por que, neste caso, falamos /socórros/ e não falamos /cachórros/? O plural não deveria ser igual?".
Chamei a pergunta de "pouco habitual" porque quase sempre me perguntam como se escreve mas raramente como se diz — e a diferença é extraordinária! Para conferir a grafia de uma palavra, tenho, além e acima dos meus fieis dicionários, um sistema ortográfico que disciplina a relação entre as letras e o som produzido por cada combinação de caracteres. Ninguém pode escrever *azteca em vez de asteca porque a combinação Z+consoante é impossível em nosso idioma — ou escrever *mansso em vez de manso ou *honrra em vez de honra porque o S duplo e o R duplo só podem ser usados entre duas vogais.
No entanto, definir a pronúncia correta de uma palavra é vinho de pipa bem diversa. Evidentemente, na maioria dos casos a própria grafia da palavra fornece informações concretas sobre sua pronúncia. Em aficionado, por exemplo, não há nenhuma letra que autorize a conhecida (e errada) pronúncia de /*aficcionado/; a ausência de qualquer acento gráfico em pudico ou filantropo desautoriza as pronúncias /*púdico/ ou /*filântropo/.
Existem, porém, algumas áreas cinzentas em que a grafia não ajuda, e de todas elas a mais nebulosa e instável envolve o E e o O, que são abertos em perto e porta mas fechados em perco e porto, por exemplo. Como se diz aquele E de obsoleto? É /obsoléto/ ou /obsolêto/? E a grelha da churrasqueira é /grêlha/ ou /grélha/? Como saber? Onde procurar?
Temos muito pouco. Quando queremos confirmar a pronúncia de um determinado vocábulo, só nos resta recorrer à opinião dos melhores gramáticos e dos dicionaristas respeitáveis — friso, opinião, nada mais do que isso, o que cria um sem-número de divergências por este Brasilzão afora: uns metem o pé na poça (rimando com roça), outros na poça (rimando com moça); para uns, a grelha do assado rima com velha (Houaiss e Aurélio, por exemplo) mas para outros, rima com orelha (Luft e todos os gaúchos, imagino). A bem da verdade, o rigoroso Houaiss já admite a indecisão ao intitular o verbete de "poça ou /ó", observando, ao final, que "no Rio de Janeiro, é mais comum a pronúncia fechada do O: /pôça/" — bem como, ao falar da grelha, não deixa de registrar que "é comum no Sul do Brasil pronunciar-se com E fechado".
É bem aqui, no meio desta penumbra, que vivem também os plurais metafônicos (que sofrem uma alteração no som quando vão para o plural), bem do tipo desses que mencionas, caro leitor. Alguns (e aí é que dói o dente) abrem a vogal do plural (ovo, ovos), outros não (bolo, bolos)! Como observaste, cachorros continua com a vogal fechada, enquando socorros abre a vogal. Isso segue alguma regra interna, invisível? Sim (ao menos parcialmente, o que já é alguma coisa). Quem estuda esses plurais metafônicos há muito percebeu que existe uma correlação estrita entre o timbre da vogal do feminino com o timbre da vogal do plural. Em outras palavras: se o O for aberto no feminino, também será no plural: porco, porca /ó/, porcos /ó/; morno, morna /ó/, mornos /ó/. Isso ocorre também em todos os nomes terminados pelo sufixo –oso (carinhoso, gostoso, tinhoso, etc. — todos têm vogal aberta tanto no feminino quanto no plural). Se, no entanto, o O do feminino for fechado, assim vai permanecer no plural, como em raposa e raposos — o que explica cachorra e cachorros.
Embora haja, como espero ter mostrado, alguma ordem nesta aparente baderna, não podemos aplicar este mesmo raciocínio aos vocábulos que não têm feminino, como broto, choro, coco, escova, gosto, morro, sopro, etc. (todos com O fechado no plural) de um lado, e povo, fogo, olho, jogo, porto, miolo, poço, corno, tiljolo, corvo e corpo, do outro (todos com aquele O aberto no plural). Nestes praticamente ninguém hesita ao escolher o timbre da vogal, pois são plurais do dia a dia (primeiros socorros, Poços de Calda, cocos verdes, brotos de bambu, para todos os gostos, etc.). Restam ainda uns poucos desses plurais em que hesitamos, como diz Luft, ou porque diferem os usos de região para região ou porque se trata de palavras pouco usadas na fala, como conforto, contorno, estorvo, forro, gozo, torno, toco.