Escrevo diretamente do Campeche, minha praia favorita em Florianópolis, cujo nome é mais uma vítima daquilo que chamamos de "etimologia popular" — espécie de fake news linguística que consiste em explicar o nome de um lugar a partir de uma suposição que, apesar de razoável e atraente, não tem o menor amparo na realidade. Assim acontece com Olinda, cujo nome, como juram os guias, teria vindo de "Oh, linda!" exclamação dos colonizadores europeus ao verem pela primeira vez a beleza da região — como se Olinda não fosse um antiquíssimo topônimo português e, muito pior, como se uma exclamação, com vocativo e tudo, na boca de um só explorador (sim, um só, porque não se imagina que tivesse sido em uníssono, como as torcidas costumam xingar o juiz) pudesse instantaneamente se consolidar num nome que seria adotado para todo o sempre...
No caso do Campeche, o escritor francês Saint-Exupéry, por volta de 1930, teria (notem aqui o futuro do pretérito) pousado na praia pilotando um dos aviões do Correio Francês, e devido à grande quantidade de pescadores que encontrou referia-se à região como "champ de pêche", um implausível "campo de pesca", construção tão canhestra em Português quanto em Francês. Posso apostar que a origem é bem menos romântica (e turística), já que desde o séc. 16 os espanhóis exploravam no México uma árvore tintória (bela palavra!) conhecida como campeche ou pau-campeche, que se espalhou pelas Américas.
Mas que seja. A coluna de hoje mostra um exemplo da imprudência de uma banca de Português ao se meter de pato a ganso. Num concurso público realizado no Rio de Janeiro, um dos textos utilizados foi uma passagem de O Sobrado, do nosso Érico Veríssimo. Um leitor assíduo desta coluna, o brilhante e jovem Guto, que vou nomear, por prudência, apenas pelo apelido, voltou de lá inconformado com a resposta dada no gabarito oficial à questão que reproduzo. No caput, um pequeno extrato de O Sobrado, na passagem em que José Lírio, protegido atrás de um muro, prepara-se para atravessar, correndo, o pequeno espaço que o separa da igreja. Ele hesita porque o inimigo tem um exímio atirador que fulmina quem quer que tente passar pela praça. Agora, a passagem escolhida:
"Levantou-se devagarinho, apertando a carabina com ambas as mãos. Sentia o corpo dorido, a garganta seca. Tornou a olhar para a igreja. Dez passos. Podia percorrê-los nuns cinco segundos, quando muito. Era só um upa e estava tudo terminado".
Agora vem a pergunta: "O texto utiliza do (sic) repertório linguístico-cultural do Rio Grande do Sul... Identifique o vocábulo que pode substituir a palavra upa, sem prejuízo do texto: (A) átimo (B) bala (C) projétil (D) salto (E) treco".
Meu amigo Guto, que apesar de jovem já convive com o bom vernáculo, não hesitou em marcar a alternativa (A): átimo, que o meu Houaiss define como "momento, instante; num átimo: rapidamente, num abrir e fechar de olhos". Pronto; foi também o que meu inteligente leitor pensou? Errado. A banca decretou que a resposta seria a (D): salto, apesar do texto avaliar a distância em dez passos. Quer dizer que, para ela, a melhor reescrita seria "Era só um salto e estava tudo terminado"? Dez passos? Pois para o jovem Guto e para mim as melhores reescritas seriam "Era só um átimo e estava tudo terminado" — um instante, um momento, uma fração de segundo...
Nos dicionários encontramos upa ora com sentido de abraço ("um upa bem apertado"), ora como uma interjeição de encorajamento (especiamente para levantar do chão ou saltar – como em "upa, nenê!"), o que justifica definirem um upa como "um salto". Porém — e este é um grande porém — aqui no nosso estado, como bem especificou a banca, ela significa "instante, momento breve, num piscar de olhos", que é, sem dúvida, o sentido escolhido pelo autor de O Tempo e o Vento.
Alguns exemplos, em ordem de importância: primeiro, no Dicionário de Porto-Alegrês, que é hoje uma das fontes mais respeitáveis sobre a fala do gaúcho, Fischer dá taxativamente à expressão num upa o significado de "rapidamente". No seu Dicionário Gaúcho, Alberto Juvenal de Oliveira a define como equivalente a "num abrir e fechar de olhos". Acrescento duas músicas do MTG (entre muitas) — e, como dizia meu saudoso pai, baiano da gema, duvideodó que a banca encontre coisa mais gaudéria: o sucesso de Os Serranos, Upa Upa, que começa com "Num upa upa eu chego lá", e o Segredo do meu Cambicho, de Leopoldo Rassier: "Num fim de tarde de qualquer domingo, encilho o pingo e saio faceiro... já num upa sigo pra o bolicho".
Não tenho dúvida de que a banca desconhece esses exemplos — e não a culpo por não conhecer, porque eu também não conheço todos os regionalismos do Rio de Janeiro, ou de Goiás, ou de Pernambuco, e não me culpo por isso. Agora, se eu criasse uma questão de concurso sobre "o repertório linguístico-cultural" da Bahia, por exemplo, eu teria a prudência (e a honestidade) de fazer uma pesquisa muito além dos dicionários genéricos, que não conseguem abarcar todas as peculiaridades regionais.