É muito raro que uma palavra fique imune à passagem do tempo. Ou termina ficando mais abrangente, ou se afasta gradativamente de seu significado original, adquirindo às vezes nuanças surpreendentes ou imprevisíveis. Essa é uma lei imutável, que poderia ser resumida numa frase com cara de provérbio: "Todas mudam; a que não mudou, mudará". Aos dicionários, coitados, cabe a nobre, mas esfalfante tarefa de registrar essas mudanças, tentando acompanhar, como podem, a velocidade do idioma.
Digo isso especialmente em atenção ao leitor Amaro P., de Pato Branco, Paraná, que escreveu pedindo uma explicação da palavra ex-voto. "Conheço voto nulo, voto em branco, voto anulado e até voto comprado, mas já vi usarem muitas vezes esse ex-voto e não consigo bispar o seu sentido. O senhor pode me ajudar?". Claro, amigo — e, como insinuei na introdução, tudo começa muito longe, já faz mais de dois milênios
A palavra voto, como milhares de outras, é uma herança do Latim. Naquela língua, significava uma promessa solene — às vezes, um pedido, uma súplica — que o fiel fazia a seus deuses, e foi com esse significado que entrou no Português. O sentido de promessa fica bem claro no voto de castidade, voto de obediência e voto de pobreza, feitos pelos sacerdotes de certas ordens religiosas. Já o sentido de pedido ou expectativa se manifesta em nossa linguagem quotidiana em expressões como "Faço votos de que ele se recupere logo", ou "Receba meus votos de um feliz Natal e um próspero Ano Novo", ou ainda "Fiz um voto solene de lutar pela paz".
No final do séc. 15, porém, o termo se bifurcou e passou a designar também a opinião que o cidadão manifesta a respeito de uma proposta ou de um candidato; num verdadeiro regime democrático, todos os assuntos importantes, da eleição de um presidente à escolha de um síndico do condomínio, são decididos pelo voto, isto é, pela manifestação livre dos eleitores. É aqui que também entram, obviamente, o voto de confiança e o voto de protesto. Passamos a ter, desde então, o voto (1) e o voto (2).
Como cada roca tem seu fuso e cada terra tem seu uso, há línguas em que a bifurcação foi mais radical: em vez do termo passar a exprimir dois significados, gerou-se uma variante paralela, nascida da mesma base: o primeiro voto, a promessa, é vow (Ing.) e voeu (Fr.), enquanto o segundo, o voto eleitoral, é idêntico em ambas as línguas — vote. Essas discrepâncias no léxico de línguas diferentes é muito comum; gosto sempre de lembrar que o termo zelus, do Latim, deu no Espanhol um único vocábulo, celo, mas em nosso idioma ele se ramificou em zelo, ciúme e cio.
Ora, o teu ex-voto, prezado Amaro, pertence ao domínio do voto (1), da promessa. Na verdade, é uma expressão vinda diretamente do Latim e deveria ser grafada em itálico, como habeas corpus, mas nosso léxico a acolheu como velha avozinha e a dispensou dessas formalidades. Segundo o dicionário Houaiss, o ex-voto é "quadro, placa com inscrições, figura esculpida em madeira ou cera (representando partes do corpo) etc., que se colocam numa igreja ou capela, para pagamento de promessa". Aquele ex- não é o mesmo de ex-marido ou de ex-governador, mas uma preposição latina que significa "proveniente de". O ex-voto, portanto, provém de um voto, de uma promessa feita, e com ele o beneficiado testemunha a sua gratidão pela graça alcançada.