"Prezado professor, meu nome é Vinicius E. A. e lhe escrevo de Guarapari, para onde me retirei depois da aposentadoria. Tomei contato com seu trabalho ouvindo, no carro de minha neta, o espetacular Noites Gregas, o seu podcast sobre mitologia, que ela fez questão de me apresentar. Confesso — me desculpe — que não sabia até então nada sobre o senhor, mas tratei de remediar minha falta mergulhando no Google, que também aprendi a usar faz pouco (e isso que já dobrei o cabo dos 80!), e lá fiquei sabendo que o senhor também é autor de vários livros e artigos sobre nossa maltratada língua portuguesa, além de manter uma coluna de tira-dúvidas no jornal ZH de Porto Alegre.
Como tenho tempo e passei a vida toda escrevendo no tribunal, estou agora trabalhando nas minhas memórias, que certamente não interessarão a ninguém a não ser a meus filhos e a meus netos, que ganharão ao menos uma pequena história de nossa família. O problema — e por favor releve os meus rodeios, porque eu caminho muito devagar — é que estou muito inseguro quanto ao meu estilo. Fiz uns cursos no computador com dois professores de "escrita" e ambos, entre outras coisas, foram taxativos: eu devo cortar o máximo possível os adjetivos e os advérbios! São supérfluos, disseram. Parece que é uma regra moderna, pois eu nunca tinha ouvido falar nisso e não gostei do efeito. Um dos professores até me mandou reescrever alguns parágrafos cortando os adjetivos para ver o resultado e meu texto ficou totalmente chocho e sem graça. E agora? Não posso nem quero mudar nesta etapa da vida. Burro velho não recebe ensino, dizia meu pai. Por isso recorro ao senhor, pedindo que dê uma terceira opinião: condenaram mesmo os adjetivos?".
Caro Vinicius, fique tranquilo. Os adjetivos e seus primos, os advérbios, continuam a ser indispensáveis instrumentos do idioma, apesar do que disseram esses dois "especialistas" — aliás, que nem deveriam ter sido consultados por alguém que escreve assim tão bem quanto o senhor. Não é de hoje, porém, que tenho notado que há uma campanha generalizada contra essas duas classes de palavras, especialmente nessas duvidosas regras de estilo que agora se espalham na internet como erva daninha.
O equívoco, como vou mostrar, foi tornar geral uma regra que só deve ser aplicada a textos que precisam ser imparciais (ou ao menos soar como se fossem). Nos trabalhos acadêmicos, nos textos científicos e na maior parte dos textos que compõem um jornal, os adjetivos e os advérbios (em especial os terminados em –mente) devem ser evitados exatamente porque sua função neste mundo é marcar a posição pessoal do autor sobre aquilo que ele está narrando ou descrevendo. Nisso eu estou de pleno acordo. Essas palavras revelam um juízo de valor (positivo ou negativo) ou a emoção de quem escreve, o que não é bem-vindo numa tese de doutorado, num artigo de medicina ou na simples descrição do jogo de ontem: "A Albânia anunciou ontem a criação de uma vacina que supostamente teria 90% de eficácia"; "O público das arquibancadas comemorava o oportuno pênalti validado pelo VAR"; "O deputado teve a feliz (ou infeliz) iniciativa de propor..." — e assim por diante.
Mas exatamente o contrário ocorre em todos os demais textos possíveis e imagináveis — incluindo memórias pessoais, colunas como esta ou qualquer texto de jornalismo opinativo. Ali os adjetivos e os advérbios são peças imprescindíveis para expressar o significado pretendido. Acima, no primeiro parágrafo, o senhor falou no "espetacular Noites Gregas"; no terceiro parágrafo, falei eu nas "duvidosas regras de estilo". A escolha de espetacular é um elogio, a de duvidosas é uma crítica. Não são frases imparciais, nem têm a pretensão de sê-lo — e eliminar os dois adjetivos apagaria grande parte da mensagem pretendida.
Nelson Rodrigues, mestre da adjetivação, só podia lamentar mesmo a abolição do adjetivo pela imprensa moderna, deixando sem emoção os acontecimentos relatados. Como lembra André Chermont de Lima, em excelente artigo publicado em O Estado da Arte, suplemento do Estadão, já que Nelson não via diferença entre jornalismo e literatura, brindou-nos com verdadeiras pérolas, como "baba elástica e bovina", "saúde de vaca premiada", "um luto desgrenhado e siciliano", "empolgante falta de escrúpulos", ou (falando de um vizinho falecido) "o idiota morto", "solene, hierático como um defunto real". Nas suas crônicas sobre futebol, chama um placar de 1x0 de "magro, esquálido, quase fúnebre", fala do "mugido cívico" da nação em "pileque unânime" depois da vitória, do povo comemorando nas ruas cheias de "desconhecidos íntimos". Será que algum boi-corneta teria coragem de podar esses adjetivos rodriguianos? Não acredito. Dom Vinicius, volte em paz para suas memórias, e bom trabalho.