É mais ou menos como na família da gente: quando duas palavras têm uma origem comum — isto é, quando são irmãs, quando nasceram da mesma matriz —, elas vão compartilhar para sempre a aparência física da mãe que as gerou, mas isso não implica que tenham significados idênticos ou quase iguais. Um bom exemplo são as duas filhas de cruz, cruciante e crucial. A primeira toma cruz como símbolo de um instrumento de tortura — daí as dores cruciantes. A segunda, por outro lado, aproveita o símbolo da encruzilhada — daí o momento crucial, a decisão crucial.
Essas divergências são ainda mais comuns entre línguas nascidas do mesmo tronco, como as filhas do velho Latim. O fato do Português, do Francês, do Italiano e do Espanhol (para citar as mais importantes) terem um ancestral comum fez com que vários vocábulos apareçam no léxico de todas elas. Como na vida real, todas receberam a mesma herança — mas, também como na vida real, cada uma vai ter uma utilidade diferente para aquilo que herdou. Para fins práticos, vou dar exemplos apenas do Português e do Espanhol, escolhidos por que são as duas línguas românicas mais semelhantes.
Chamamos de vaso o recipiente para pôr flores; no Espanhol, esta é a palavra usada para nosso copo (e não *cuepo, como arriscam alguns). No Espanhol, botiquin não é botequim, mas o estojo de primeiros socorros, a tradicional farmacinha da família brasileira (literalmente, "a pequena botica"). Da mesma forma, ambas as línguas têm oficina, mas enquanto para nós este é um lugar onde se consertam carros ou, mais modernamente, uma espécie de curso gourmet (equivalente ao Inglês workshop), no Espanhol a palavra designa simplesmente o que chamamos aqui de escritório. Por fim, desabrochar nas duas línguas vem de broche, "fivela, presilha, botão". Aqui significa "abrir-se o botão em flor"; no Espanhol, desabrochar significa desabotoar (no avião da AeroMexico, a comissária de bordo nos mandava abrochar los cinturones, o que, convenhamos, é muito mais imponente que o nosso quase meigo "afivelar os cintos").
Agora sim, caros leitores, estou em condições de responder à pergunta enviada por Alex R., de São Paulo, capital. Diz ele: "Professor, sei que sua praia é o Português, mas acho que vai tirar esta de letra: sintonizando uma emissora espanhola dedicada ao futebol, ouvi o locutor dizer que Neymar tinha soprado ontem as velas do pastel de aniversário. Pelo contexto, dava para entender que se tratava de um bolo com velinhas, mas fiquei muito curioso: por que ele chamava de pastel?".
Bem, Alex, se já leste minha resposta até aqui, já deves estar percebendo aonde pretendo chegar: a herança latina é a mesma, mas cada idioma deu a ela um destino diferente. O Latim pasta ("massa"), deu no Francês pâte ("massa"), mãe da inigualável patisserie francesa. No Italiano deu pasta mesmo, como no também no Português, de onde sai pastifício e, finalmente, o famoso pastel. No Brasil este termo designa, como nós sabemos e os dicionários confirmam, uma massa de farinha de trigo, dobrada em dois, com recheio salgado ou doce, que se frita ou eventualmente se assa — mais ou menos assemelhado, na forma, ao calzoni italiano ou à empanada argentina. Em Portugal, porém, já se nota uma pequena divergência, pois também chamam de pastéis de bacalhau o que para nós chamamos de bolinho. Atravessando a fronteira, já na Espanha, pastel passa a designar o nosso bolo: daí o pastel de novios, aqui conhecido como bolo de noiva. Tua pergunta despertou um item há muito soterrado na memória: no seriado do Chaves, na versão primitiva apresentada no SBT (eu via com meus filhos pequenos, e ria tanto quanto eles), havia um episódio em que o Chaves, faminto como sempre, passava o tempo todo angustiado, à espera do pastel que alguém havia prometido — que, quando se viu, era um bolo clássico, com glacê e tudo. Parece que o México (pátria do Chaves) é o único país da América Latina que conservou o significado da Espanha; em todos os demais países a palavra designa um pastel semelhante ao nosso, com pequenas variações de massa e de recheio.
E me antecipando a quem possa perguntar, já vou informando que o parentesco dele com o pastel da pintura é muito distante. Esta técnica também vem de pasta, e seu nome vem dos bastões ou lápis coloridos feitos com pastas com pigmentos de cores suaves, que neste caso substituem os pincéis. Como diz poeticamente um site francês de pintura, as cores pastel (o singular é preferível aqui) são cores claras, delicadas e macias, que têm um efeito revigorante e alegre em nosso humor, como se retornássemos à nossa infância...