Dona Lucy W., mãe preocupada, escreve para esclarecer uma dúvida que a está deixando nervosa: "Caro professor: atendendo a nossas orações, Nosso Senhor concedeu a nossa família uma graça há muito esperada: minha filha mais velha foi aceita como aluna na Universidade de Coimbra, que, como o senhor deve saber, fica em Portugal. Uma amiga que estuda lá nos mandou uma série de informações práticas sobre a cidade e sobre a faculdade, entre elas um regulamento que fala da roupa que devem vestir os calouros. É aqui que preciso de sua ajuda; nesta "Praxe Académica Coimbrã” (não seria acadêmica, professor?) está escrito que as estudantes devem usar "saia com prega macho, com uma mão travessa acima do joelho". Isso é uma brincadeira, um daqueles trotes que os veteranos passam, ou tem algum sentido aí que eu não estou entendendo?".
Não, Dona Lucy, pode ficar tranquila que não é trote e, se é isso que a preocupa, não tem nada aqui, a meu ver, que possa escandalizá-la. Mas vamos por partes: primeiro, a senhora estranhou aquele académico com acento agudo; pois fique sabendo que esta é uma das "licenças" concedidas pelo famoso Acordo que deveria, em tese, unificar a ortografia de nosso idioma. Há centenas de palavras que se enquadram nesta mesma situação: nós escrevemos tênis, tônico, acadêmico, e Portugal escreve ténis, tónico, académico...
Quanto ao vocábulo que a deixou preocupada, é necessário um pouco de paciência para desemaranhar o novelo que foi se formando ao longo da história com a família de travesso. Inicialmente, este adjetivo era usado principalmente no sentido de "oblíquo, atravessado". Nos manuais de esgrima, descrevia-se o golpe travesso, o talho travesso; a porta travessa da igreja era a porta lateral; as ruas travessas cortavam as ruas principais (como até hoje); e assim por diante. É importantíssimo notar que, em todos esses exemplos, a pronúncia do E é aberta, como em acesso ou depressa.
O vocábulo assumiu, depois, um segundo sentido: menino travesso é o menino traquinas, arteiro, inquieto, que vive fazendo das suas. Neste caso, os deuses que zelam por nosso idioma tornaram fechada a pronúncia do E, para não haver confusão: travesso e travessa, neste sentido, rimam com arremesso e condessa. Não é este o adjetivo que foi usado nas instruções do dress code coimbrão – e a senhora teria razão em se preocupar, se as calouras tivessem de lidar com uma "mão travessa acima do joelho".
Felizmente, o E aqui é aberto. Mão travessa (também aparece com hífen) é uma antiga medida de comprimento que correspondia à medida da largura da mão com os dedos unidos, e que foi, no sistema oficializado por D. João VI, fixada em 10cm. A expressão, que é usada até hoje em algumas regiões de Portugal, já figurava na carta de Pero Vaz de Caminha: "traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador". Para sua tranquilidade, a saia não deve subir mais dez centímetros acima do joelho – o que, nos dias de hoje, é um limite para lá de conservador...