Durante a missa de sétimo dia de Jô Soares, no mês passado, Drauzio Varella contou que o amigo escolheu passar seus últimos dias fora do hospital, assistindo a clássicos do cinema noir na televisão de casa. O escritor americano Philip Roth, que morreu em 2018, aos 85 anos, planejou algo parecido para o fim da vida. Depois de parar de escrever, em 2010, passou os últimos anos lendo e assistindo a um canal de streaming especializado em filmes antigos.
Esperar a morte no sofá, vendo um filme velho na televisão, me parece uma excelente escolha – para quem tem a chance de escolher. Algumas pessoas contam que, diante da morte, foram capazes de rever a própria vida como se fosse um filme, mas não confio muito no resultado dessa edição apressada de momentos relevantes providenciada quando o avião ameaça cair ou os freios do carro já pararam de funcionar. Sabe-se lá que tipo de filme minha cabeça seria capaz de produzir em um momento de desespero. (Adoraria que fosse um Visconti, mas vai que rola um Tarantino.)
A despedida razoavelmente tranquila, em casa, perto do que e de quem se ama, é um enorme privilégio – assim como a ideia de manter-se lúcido e interessado no que acontece em volta até o fim. Mas o que eu mais gosto nessa imagem de dois artistas bem-sucedidos aguardando a morte na companhia de filmes antigos é, paradoxalmente, a vitalidade do gesto.
No prazer associado a um determinado filme, livro ou música, há sempre algo que remonta às nossas primeiras experiências de fruição. Quando essa matriz de bem-estar emocional, intelectual ou estético se mantém viva até o fim, nunca estamos realmente sozinhos, porque, de certa forma, estamos conectados à experiência humana no que ela tem de mais profundo e permanente: a criação, a comunicação entre diferentes tipos de sensibilidade, a expressão de ideias e sentimentos. Em resumo, a arte.
Nas melhores condições de pressão e temperatura – ou seja, poupados de desastres ou doenças terríveis – o que nos ajudou a viver pode nos ajudar a compor um final mais ou menos feliz também. Bom, eu pelo menos gosto de acreditar nisso. E acho que Jô Soares e Philip Roth eram da minha turma.