Um homem comum comete um assassinato – à luz do dia e à vista de todos – sem motivo aparente. É preso, julgado e condenado à morte. Fim da história.
O Estrangeiro (1942), de Albert Camus, é um livro curto, direto e enigmático. Apesar disso, ou por causa disso, tornou-se um dos clássicos da língua francesa mais lidos e vendidos até hoje. A trama é enganosamente simples. Na primeira metade do livro, o personagem principal, Meursault, narra sem paixão sua vida banal: a morte da mãe, a relação com a namorada, as conversas com os amigos, a interação com o chefe. Acontecimentos aleatórios desembocam na cena em que ele se encontra com uma arma na mão diante do homem que irá matar. Na segunda parte, enquanto aguarda a execução, é visitado por um capelão, nega o consolo da religião e prepara-se para morrer.
Jean-Paul Sartre, um dos primeiros e mais entusiasmados leitores do livro, considera o romance uma espécie de ilustração ficcional do ensaio O Mito de Sísifo, em que Camus discorre sobre o “absurdo” da condição humana: 1) queremos entender como tudo funciona, mas somos incapazes de apreender mais do que uma pequena fatia da realidade; 2) queremos viver para sempre, mas sabemos que é impossível. Tocar a vida, sabendo como tudo vai acabar, é como empurrar uma pedra montanha acima e vê-la rolar de novo para o chão logo em seguida. Decidir se esse esforço vale a pena (ou não) é o que cada um deve responder para si mesmo todos os dias de manhã.
A leitura filosófica do romance pode ser a mais próxima do projeto original do escritor, mas duvido que seja a mais comum. A maioria dos leitores termina o livro se perguntando por que diabos Meursault decidiu matar aquele árabe na praia e se foi justa ou não sua sentença de morte. Racionalmente, sabemos que o narrador cometeu um crime e merece ser punido, mas a razão não nos impede de torcer para que ele escape da guilhotina. Ao nos contar a história desde a perspectiva íntima de Meursault, o autor nos revela nuanças que nenhum tribunal levaria em conta. Sem perceber, acabamos torcendo pelo assassino.
Mas e se a história fosse contada de outro ponto de vista? É o que faz o escritor argelino Kamel Daoud em O Caso Meursault, publicado no Brasil em 2016. No livro, o árabe morto por Meursault ganha um nome, Moussa, e sua história é narrada por seu irmão mais novo, Haroun. Além de bela e bem realizada homenagem à obra de Camus, o livro de Daoud nos lembra como o acesso a diferentes pontos de vista pode modificar até mesmo aquela pequena fatia de realidade que acreditamos conhecer bem.