Nos anos 1970, quando comecei a estudar, a escola era um dos cenários privilegiados do Show de Truman em que o país esteve imerso durante boa parte de sua História. Como no filme do Jim Carrey, havia dois enredos paralelos disputando o status de realidade: o de um país complexo, desigual e violento, do qual nunca ouvíamos falar em sala de aula (ou no noticiário da TV), e o do povo heroico de brados retumbantes que nos era apresentado como verdade única e inquestionável.
Nesse país em que o céu era sempre risonho e límpido (graças à iluminação artificial fornecida pela censura), as comemorações do sesquicentenário da Independência foram um triunfo absoluto do marketing nacionalista. Não havia criança com rádio e TV em casa que não soubesse cantar o refrão do hino dedicado à efeméride: “Sesquicentenário / E vamos mais e mais / Na festa, do amor e da paz”. Ou maranjo que suspeitasse de algum conteúdo subliminar no versinho que, inadvertidamente, admitia a existência de certos segredos incômodos nos porões da ditadura: “Esse Brasil faz coisas / Que ninguém imagina que faz”.
Em 2022, não temos hino do Bicentenário nem censura para ditar a pauta, mas a visão de mundo do atual governo não é muito diferente. Para manter acesa a chama da História edulcorada vigente nas escolas nos anos 1970, alguém bolou a bizarra ideia de oferecer ao coração de Dom Pedro I a oportunidade de realizar uma não solicitada turnê oficial pelo país. E era isso. Morreria aí, conservada em formol, a programação completa dos 200 anos da Independência – não fosse o tanto de livros, séries, exposições e reportagens aproveitando a data para iluminar diferentes aspectos do período até aqui pouco conhecidos.
De tudo que li e ouvi nos últimos meses, nada me impressionou mais do que o grandioso Projeto Querino (projetoquerino.com.br) – conjunto de iniciativas composto por um podcast de oito episódios, um site e reportagens publicadas na revista Piauí. Ao recontar a História do Brasil dando centralidade à escravidão na formação política, econômica e mental do país, o Projeto Querino não apenas nos apresenta novas leituras sobre episódios conhecidos, como introduz fatos e personagens que sequer eram mencionados nas nossas aulas de História.
Erros, omissões e distorções, repetidos durante décadas nos livros escolares, ajudaram a formar a visão que muita gente tem, ainda hoje, do país em que vive. Se instituições de ensino fossem como fábricas de automóveis, era o caso de oferecerem um “recall”: reapresentar o Brasil aos brasileiros de 2022. Para evitar acidentes.