Até a Revolução Francesa, a decapitação era um luxo reservado aos reis e a sua patota. Se você acha que perder a cabeça não se trata exatamente de um luxo, é porque não imagina o quanto costumavam sofrer os plebeus condenados à morte. Na França do século 18, a pena de morte era acompanhada de tormentos que variavam em crueldade conforme o crime em questão: enforcamento para criminosos comuns, arrastamento e esquartejamento para quem ofendia o rei, morte na fogueira para acusados de heresia ou sodomia, suplício na roda para os assassinos.
A partir da década de 1760, sob influência dos pensadores iluministas, começou a ganhar corpo na Europa e nos EUA a tese de que formas brutais de punição eram incompatíveis com uma sociedade civilizada. "Não devemos esquecer que até os criminosos possuem almas e corpos compostos dos mesmos materiais que os dos nossos amigos e conhecidos. São ossos dos seus ossos", escreveria Benjamin Brush, um dos signatários da Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1787.
Não foi de uma hora para a outra, porém, que a tortura passou a doer nos ossos da maioria. No livro A Invenção dos Direitos Humanos, a historiadora Lynn Hunt relaciona a mudança de mentalidade ao avanço das ideias de autonomia e empatia, influenciadas por novos hábitos domésticos e até mesmo pela literatura. Não que a empatia tenha sido inventada no século 18, mas os novos valores em circulação na sociedade ampliavam a categoria de humanos dignos de respeito e compaixão.
Enquanto houver humanos, haverá quem sinta nos próprios ossos a vergonha e a desumanidade da tortura
Quando vemos um presidente da República celebrando a tortura e seguranças chicoteando um jovem apanhado roubando chocolates, algo dentro de nós se confrange. Parece que estamos voltando não quatro décadas na história do Brasil, mas 230 anos (a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é de 1789) na história das ideias. Mas essa impressão é de certa forma enganosa. O processo de reconhecer a humanidade no outro – no negro, na mulher, no gay, no pobre, no imigrante e mesmo no criminoso – vem se construindo de forma lenta e desigual e nunca realmente se completou. As crises dos refugiados africanos na Europa e dos imigrantes latinos nos EUA estão aí para lembrar que essa discussão avança e recua o tempo todo.
A boa notícia é que nunca se desinventa um ideal. Enquanto houver humanos, haverá quem sinta nos próprios ossos a vergonha e a desumanidade da tortura.