— Só me resta trabalhar três vezes mais.
Foi o que me disse o livreiro Jonatas Santos, que pediu compreensão para a esposa e para os dois filhos, já que não se mostrará tão presente em casa nos próximos meses de reconstrução de seus negócios.
A tradicional Livraria Santos, há 14 anos no mercado gaúcho, perdeu 80 mil livros com a enchente em Porto Alegre e na Região Metropolitana. Duas de suas dezessete unidades no estado foram destruídas: a matriz no bairro Navegantes e uma loja em Canoas.
Num cenário de guerra e devastação, todos os lançamentos acabaram inundados pelo rio Guaíba, inutilizados para a venda. Montanhas de edições jogadas fora, com o agravante de que o papel é extremamente sensível à umidade. Basta a encadernação molhar um pouco que ela incha. Não há sequer como comercializar edições que não tiveram contato direto com a água, pois se revelam manchadas ou onduladas.
O que salvar de um depósito que permaneceu no lodo e na lama por 15 dias, contaminado pelo esgoto?
A casa editorial perdeu seu maior ativo de uma hora para outra, o fundamental e sagrado estoque, não podendo abastecer as estantes das filiais.
Pelo estado irreconhecível das obras, torna-se complicado, inclusive, fazer levantamento exato das baixas com as editoras e fornecedores.
É tamanho o volume de livros que o montante desperdiçado equivale a 1/3 do acervo inteiro da Biblioteca Pública do Estado (240 mil livros).
Se levarmos em conta o preço médio do livro, R$ 46,39 — de acordo com pesquisa realizada pela Nielsen Bookscan e pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) no ano passado —, houve um prejuízo na faixa de R$ 1,8 milhões (livraria recebe metade do valor do livro). E a conta não abrange os maquinários, mobília, computadores e imóveis que também estão inviabilizados.
Apoios e incentivos aos empresários afetados pelas cheias não cobrem o rombo no orçamento. O Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), por exemplo, abriu um crédito de até R$ 150 mil, que compreende apenas 8,3% dos danos no estoque da Livraria Santos.
Jonatas Santos pretende organizar uma noite solidária de autógrafos, com a participação de dezenas de autores, e aposta na rotatividade alta em suas outras lojas para começar a se reerguer.
Não pode parar e se lamentar. Cinquenta funcionários dependem dele. A única receita que tem em mãos é o carinho dos seus frequentadores.
— Que compre um livro para si e outro para dar de presente.
Para sair da maior crise da história do Rio Grande do Sul, ele não sente mais vergonha de nada. Nem que tenha que se fantasiar de cupido para o Dia dos Namorados, a próxima data mais esperançosa do comércio.
— A imaginação e a fantasia são as armas contra a nossa realidade precária.
A verdade é que o apocalipse flerta com o setor livreiro gaúcho. Não houve respiro depois do fechamento da Livraria Cultura e falência da Saraiva, depois da pandemia, depois do monopólio do mercado eletrônico.
— A enchente completou as pragas do nosso Egito — lamenta o livreiro Delamor D'Ávila Filho.
Ele é responsável pela segunda maior rede de livrarias do Rio Grande do Sul, Cameron, que teve sina semelhante à da Santos.
Das 11 unidades, três estão localizadas no Aeroporto Salgado Filho e ficaram abaixo d'água. As perdas chegam a 80% do estoque, com a dizimação de 100 mil exemplares, num prejuízo estimado em R$ 2,2 milhões somente em produtos, além do sacrifício do mobiliário e de parte da frota de distribuição.
— Eu não sei para onde olhar — comenta Delamor.
O empresário vem fazendo um esforço para seguir em atividade. Não mexeu no quadro de 89 funcionários, tem realocado a mão de obra para as unidades em funcionamento em sete shoppings na capital e na Região Metropolitana.
— Se não houver reposição das consignações por parte das editoras, eu quebro — conclui.
O que sobra para os trinta e três estabelecimentos gaúchos atingidos pelas cheias, entre livrarias pequenas de bairro, sebos, editoras e distribuidoras? Qual esperança para quem tem um único endereço, sem filial nenhuma?