Uma das atividades que mais unia a escola era a gincana. Mobilizava turmas inteiras na solução de desafios, de charadas, de enigmas. Fazíamos cartazes, convocávamos os pais para nos ajudar na conclusão das tarefas, pedíamos livremente a colaboração de nossos vizinhos na arrecadação de alimentos, de jornais e revistas, de livros. Perdíamos a timidez, o medo do convívio, como se tivéssemos um salvo-conduto para bater de porta em porta no bairro.
Minha amiga Patrícia Parenza ilustrou o que sentimos durante o maio de terror e de mutirão contra a enchente que assolou o nosso estado: “Viver no RS tornou-se uma grande gincana, onde todas as equipes saem ganhando”.
Ela tinha razão. Não havia um único degrau de pódio, não havia um solitário vencedor, todos que ajudaram são vitoriosos.
Não foi uma gincana para atingir um primeiro lugar, foi uma gincana para preservar nosso lugar no mundo, nossa cidade, nossa vida. Uma gincana da sobrevivência, de socorro a vítimas que acenaram de cima de telhados, de amparo a famílias que perderam tudo o que conquistaram ao longo de décadas. Foi uma gincana de gritos, de lágrimas, de súplicas, de existências destroçadas, de sonhos desfeitos. Uma gincana de salvamento.
Nunca ocorreu no país tamanha campanha de auxílio. As pessoas não ficaram paradas, não se entregaram para a imobilidade do pânico, não se permitiram olhar de longe.
Retomaram a sua agenda de contatos, vasculharam os telefones mais antigos, fizeram vaquinhas, rifas, Pix, não deixaram nenhum desabrigado sem resposta.
Fossem flagelados próximos ou distantes, familiares ou desconhecidos, valia a soberana regra de ajudar primeiro, depois perguntar.
Quem não teve sua casa alagada acolheu parentes e amigos. Quem não teve seu lar ameaçado juntou parte de seu armário para doação.
Antes de a própria solidariedade nascer, vieram a comoção, a identificação, o espírito de grupo, de pertencimento, de raízes.
Descobrimos os amigos que tinham barcos, jet-skis, botes, coletes, roupas de mergulho. Solicitamos o aparato emprestado para resgates, sem receio de não sermos atendidos. Coragem é extroversão. Não existe cara de pau diante de uma tragédia. As formalidades desapareceram por completo.
Água potável, mantimentos, itens básicos de higiene… A lista de necessidade imediata crescia e assim ranchos foram feitos sem parar para a distribuição em abrigos.
Precisava-se de caminhão: “conheço alguém”.
Precisava-se de óculos: “conheço alguém”.
Precisava-se de aparelhos auditivos: “conheço alguém”.
Precisava-se de ração: “conheço alguém”.
Precisava-se de colchão: “conheço alguém”.
O que mais se ouvia era que se conhecia alguém. Predominou uma ciranda incansável de telefonemas e mensagens, em busca de produtos de urgência.
Corredores humanos de esperança ocuparam o lugar de pontes, de passarelas, de viadutos submersos.
O que não se encontrava na rede de afetos era comprado. A sobrevivência coletiva pairava acima de qualquer avareza.
É nossa histórica e corajosa gincana para salvar o nosso estado. E não acabou. Encerramos apenas uma fase. Agora acharemos rodos, vassouras, esfregões, baldes, luvas, escadas, carrinhos de mão, caçambas, para limpar uma por uma das residências.
Jamais subestime um povo ferido.