Numa de minhas oficinas de poesia, eu tive um aluno brilhante, de raciocínio límpido, que elaborava inversões e perguntas rápidas com sagacidade filosófica. Ele se sentava no fundo. Um mineiro de vinte e seis anos, educado e atento, de boina cinza e barba rala. Recém havia se mudado para Porto Alegre.
A anedota é que ele veio acompanhar a mãe em seu novo trabalho como pedagoga no IPA, mas ela voltou para Minas Gerais e ele ficou.
Aquele estudante curioso e ávido de saber se tornaria o poeta Guto Leite, titular de Literatura Brasileira na UFRGS, autor de oito livros de poemas, entre eles, Entrechos ou valas do silêncio (2012). Não bastando seu dom em arrancar suspiros, fazer silêncios e encaixar rimas, assumiu também o papel de compositor e cantor, com os discos Brique (2015), Dez canções sem as quais você não poderá viver nem mais um segundo (2016) e Máquina do tempo (2021). Ganhou tanto o prêmio Açorianos de Literatura quanto o de Música. Já assisti a seu pocket show e ele realmente domina o palco com sua conversa sussurrada, criando uma intimidade súbita com o público.
Acredito que é até um atentado alguém ter tantos talentos e encontrar tempo de ser simpático e acessível.
Num dos ciclos maravilhosos da existência, meu aluno virou professor de minha filha, e um de seus mestres prediletos.
Confio que todo bom aluno é um professor em potencial.
Ele reside no térreo de um prédio na avenida Praia de Belas. É porto-alegrense com orgulho, pai de dois filhos gaúchos, Theo e Gael, casado com a advogada Larissa.
Infelizmente, a sua história inteira por aqui se esvaiu. Não sobrou nada de seu apartamento depois da maior enchente da história do Rio Grande do Sul. Perdeu sua biblioteca de dois mil livros, seus discos, os desenhos das crianças, seus estudos, seus prêmios. O mobiliário ficou irreconhecível, um objeto sobre o outro, num entrevero de escombros. Não tem como distinguir o que é quarto do que é sala. Passou um liquidificador do Guaíba no espaço, sem nenhuma mansidão. Mais de dois metros de água tomaram seu cantinho, apagaram seus documentos, corromperam sua memória, limparam sua escrivaninha, atingindo frontalmente uma vida feita em papel.
O caos chegou que nem “balsa, valsa, no seu colo”, como diz em um dos seus versos. Arrombou a porta, saqueou seus armários, usou suas roupas, levou seus pertences.
Num gesto premonitório, escreveu um poema em janeiro, que parecia avisar o que sofreria em maio:
“naquela primavera não entendi o alvoroço:
ver o guaíba avançar pelo centro, o fechar inútil das comportas, os carros submersos, os ratos escalando bueiros junto às baratas obras de escoamento, o alagar de avenidas aterradas, a praia de belas se tornar praia, o beira-rio beirar o rio, o curso caudaloso do arroio dilúvio dar susto nos ciclistas”.
Não dava para crer que a cheia se repetiria, após a última aparição fantasmagórica em 1941. Mas a sua intuição lírica advertiu que algo estava errado desde setembro de 2023, com a destruição do Vale do Taquari.
A pior sensação para Guto não foi ter retornado para a sua casa, é lembrar aos poucos, dia a dia, o que sumiu. Vai, gradualmente, de acordo com as necessidades, recordando mais um item desaparecido, mais um item irrecuperável: edições autografadas e raras, relógio antigo de pulso, louça preferida, coletâneas de que participou na juventude.
É como se tivesse regredido, voltado a morar em Porto Alegre, tudo de novo, do zero, como há 16 anos, quando era um estudante esperançoso, de boina cinza e barba rala.