Testemunhamos cachorros traumatizados nos abrigos. Nadavam no ar. Nadavam no sono. Não conseguiam mais se acomodar dentro de suas casinhas de pet. Procuravam ficar no telhado, na parte mais alta de qualquer lugar, com receio de que a correnteza, o medo, a dor voltassem.
Se os cachorros estão seriamente sequelados, o que dizer dos moradores vitimados pelo desastre?
Como retornar para casas que já foram invadidas por mais de uma enchente? Casas reincidentes, que já foram refeitas e acabaram novamente destruídas? Como acreditar que agora as cheias não vão mais se repetir?
Como dar segurança aos necessitados do Vale do Taquari, que já perderam tudo? Não foi uma, foram várias enchentes em maior ou menor grau. Quatro golpes nos últimos anos, despejando trabalhadores de seu lar, retirando seus pertences.
Como recuperar a confiança e credibilidade? Qual medida receberão das autoridades, qual imunidade terão do governo?
Como não tremer durante uma nova tempestade? Como não desconfiar da força do vento e da fúria do rio?
Como confortar os filhos na hora de dormir, afirmando que podem descansar tranquilos, em paz, que podem voltar a pensar unicamente na escola, que não mais precisarão sair correndo do quarto pelo avanço das águas, em madrugadas desesperadas de evacuação?
É meio milhão de desabrigados, que se encontram em alojamentos provisórios ou residências de parentes e amigos.
De que modo acontecerá a realocação?
Exige-se uma mudança de mentalidade, já que entendíamos como área mais nobre da cidade a que estava mais próxima do rio, com o comércio e serviços essenciais no entorno. Os parâmetros serão outros. A segurança deverá prevalecer em detrimento da paisagem.
Áreas verdes de proteção ambiental não poderão ser mais povoadas, nem clandestinamente. Não poderá existir vista grossa eleitoreira, omissão oportunista. Não poderá ocorrer desmatamento.
Teremos que desenvolver terrenos mais altos, mas que não sejam propensos ao risco de deslizamentos de terra pela chuva.
Nossa topografia não ajuda com vales e encostas, com estradas serpeando pelos corredores da natureza. Não há margens seguras para moradias em alguns municípios.
E como propor que habitantes de terrenos seculares se desloquem para territórios sem valor comercial, longe do emprego, da escola, do centro urbano?
Como abandonar o único espaço que se conhece, virar as costas para uma escritura conquistada com suor e esforço?
Como largar o seu cantinho, ainda que demolido, e não temer saques e invasões, em ondas de violência social agravando a devastação?