Por Celso Gutfreind
Psicanalista e escritor, autor de “Sig e Rita, Teatro” (editora Bestiário), entre outros
A proposta é fazer uma crônica, tão somente isso, embora aborde um livro de poemas que se chama E Outros Poemas, do autor Guto Leite, a quem incluo (na crônica), logo não faço uma abordagem estrutural. E haveria, em cada página, um estofo para destrinchar a linguagem, a começar pelo título aberto, sugestivo, sem a menção de um poema antes dos outros que virão sem ele.
Se eu me detivesse na linguagem e fosse mais cerebral, o que mais importaria, nesse caso, seria a urdidura de uma obra original, essa de quem maneja o artesanato do poema (o poeta é professor de Literatura), de quem domina a métrica de que se vale (e a explode, à la Gullar ou Corsaletti), de quem faz combinações inusitadas (à la Maiakovski), de quem constrói metáforas (bárbaras), de quem está de olho no seu tempo de fome, miséria e smartphones, de quem está deprimido (mas não calado) com a miséria desse tempo.
O que mais poderíamos pedir do poeta e seu poema?
Eu nada mais pediria, mas fui ao lançamento do livro do Guto e assisti a seu pocket show (ele também é cantante), na charmosa livraria de bairro Paralelo 30, este comércio que, através de sua forma e de seu conteúdo, apresenta uma de nossas maiores resistências (civis) diante do estreitamento do espaço para as artes, no mundo contemporâneo, incluindo os livros e suas casas falidas em shoppings pasteurizados.
O autor apresentou cinco canções, entremeadas pela récita de poemas, em companhia dos competentes colegas músicos, o baterista pleno de ritmo, Leandro Moura, e o disputado e genial contrabaixista, Bruno Vargas. O trio deu o que falar no que cantou, mas mantemos a nossa proposta inicial de fazer uma crônica, tão somente isso, logo, longe da crítica cerebral de um livro de fato lançado, ou de um espetáculo de fato apresentado, com pleno direito a uma resenha que juntasse lá com trá ou desfiasse citações do próprio texto e das tantas angústias de suas influências.
Ainda assim, eu o cito, na sessão Flashes, quando apresenta um poema de verso único: “Menos pai, mais coreógrafo”. E aqui desembarco finalmente onde a crônica deseja chegar, que é na poesia e na infância. Na poesia pura, a dos primórdios de nossa existência, e na infância inicial, os primórdios em si. É que Guto, em sua breve performance, faz pequenas pausas e conversa com a plateia de seus leitores ou ouvintes, quando confessa o receio de estar fazendo uma apresentação diante de seus filhos (pequenos), o Theo e o Gael. Ali expressa, com humor, que pode estar construindo más lembranças, mas é traído pela emoção com que o confessa. Sabemos que não é o caso, porque sentimos que pode estar oferecendo o melhor de uma parentalidade para uma filiação, ou seja, um coração ritmado a ponto de estar junto afetivamente.
Uma emoção não menor do que esta que expressa ao recitar o poema Campeão Brasileiro, em que diz: “O time que matou meninos em fevereiro/ será mais uma vez campeão do brasileiro”. O restante do poema mantém o pique daquele artesanato elevado, no equilíbrio da forma (rimas, aliterações, assonâncias, um soneto) com o conteúdo (o social, o amoroso, o desequilíbrio climático). E conhecemos bem a história a que o texto alude: a morte de 10 meninos, no Ninho do Urubu, precário Centro de Treinamento de um time milionário que continuou milionário (e onipotente) e também precário para reparar a sua responsabilidade na tragédia que devastou 10 famílias humildes: “Será mais uma vez campeão do brasileiro/ o time que matou meninos em fevereiro”.
Guto recita aos solavancos, com a tal emoção. Seus olhos marejam, a garganta engasga, a língua titubeia. Está tão emocionado com as mortes de Christian, Athila, Arthur, Rikelmo, Pablo, Bernardo, Gedson, Jorge, Samuel e Vitor (sem maiúsculas, forma buscando conteúdo) como esteve quando falou de seus filhos Theo e Gael. Aí está o que a forma de nossa crônica propõe ao seu conteúdo, para além do estrutural ou sociológico. No começo, havia uma emoção maior, transcendente, da casa para o mundo. No meio, havia uma linguagem maior, transcendente, da emoção para a palavra. No fim, a possibilidade de transmitir a emoção para o leitor e o ouvinte.
E transmitiu. Porque, no começo da vida, era o ritmo. Porque, no começo do ritmo, era a emoção. Porque, sem eles, não se faz um poema nem um ser humano. Porque, tal qual aquele pai citado, um poeta também precisa ser mais coreógrafo do que poeta.