Por Celso Gutfreind
Psicanalista e poeta, autor de “A Nova Infância em Análise” (Artmed), entre outros
Tem quem ache que arte e ciência não podem andar juntas. Tem quem ache que poesia é complicada de se ler. E poucos duvidam da dificuldade de (re)fazer as representações, na vida em si. Assim é com as mentais, conforme a psicanálise. Ou com as sociais, conforme a sociologia. Afinal, é muito difícil mudar o que se acha. Mas a poesia se candidata a gênero estético mais tarimbado para desconstruir paradigmas ossificados. Por estar mais próxima do começo. Por trazer a música das cantigas de ninar que nos constituíram. Hoje a ciência mais cristalina traz evidências de que a nossa vida psíquica é organizada pelo ritmo trazido pelo outro. Desde o ventre, com as batidas sonoras do coração e da respiração maternas até a presença-ausência dela, quando já se respira por si.
A poesia é próxima do balbucio, quando os nossos pensamentos não estavam ainda petrificados. Não que fossem inocentes. Eram nascentes, e isso os fazia necessariamente influenciáveis. A poesia está próxima do jogo de palavras necessário para a aquisição da linguagem. É através da brincadeira que depurarmos o que vivemos até nos tornarmos quem somos: “Sou uma estrela desapontada”, brinca a poeta Luciane Slomka com a imagem da estrela de cinco pontas. Brincar com as palavras nos conduz de um silêncio (mutismo) mortífero para um local abstrato e vivo, em que contamos com elas para sobreviver. Para Luciane Slomka, a palavra é saúde e saída.
Já pelo título, sua poesia dialoga com o imbróglio dos primórdios. Seu livro se chama A Palavra Umbilical, devidamente registrado a que veio. Não viemos de um outro exclusivamente carnal, com genética e substâncias. Esse outro também é alma, no que oferece de subjetividade para, no encontro com a subjetividade incipiente do bebê, esse possa construir a sua própria. O psiquiatra e psicanalista francês Bernard Golse traz aqui uma imagem significativa. O bebê propõe uma ópera, feita de olhares, gritos e não sei o quê. A mãe oferece outra, com cantigas, toques, gestos e até mesmo tristeza. Do encontro entre as duas, nasce uma terceira, essa que forma o bebê e transforma a mãe. Não ao acaso, um dos poemas de Luciane se chama Terceiro País (Uma Proposta).
O mesmo Golse, em parceria com Sylvain Missonnier, retrocede o alvo, expandindo as pesquisas para a importância do que se passa dentro do útero, onde constatam que já há sons, visões e até cheiros. Ou seja, começamos a ser bem antes de respirarmos por conta própria: “Foi tão longe e tão fundo que começou a saber/ Da vida sem respirar”. Ali começaria o trabalho de desenvolvimento psíquico, sustentado pelo outro, com o nascimento poético das interações, base de nosso desenvolvimento afetivo e cognitivo: “Gente morre é se não ama”. Daí o achado oceânico da imagem palavra umbilical. A palavra nasce do embate com o outro, fruto do encontro e da separação. A representação dessa separação para Freud ou, em linguagem poética, a borboleta espetada na página, para Mario Quintana.
A novidade está em situar o cenário do processo na vida pré-natal (Golse, Missonnier), aprofundando o que cientistas vêm provando: a palavra é fruto de interações claramente observáveis fora do ventre materno, onde tudo o que conta é poético, com ritmo, prosódia, figurabilidade: “Cabe a cada um/ – se tiver coragem – /saber de que ventre nasce”. Aqui a arte poética de Luciane encontra a ciência da perinatalidade. A palavra só fertiliza se fertilizada pelo corpo do outro: “Vago nesse espaço/ Meio desocupado, meio baldio,/ Meio pronto para fertilizar”.
Como poeta e psicanalista, Luciane utiliza os duplos recursos para juntar campos. Sugere que a poesia não é um gênero literário complicado, para poucos. Ela é para todos, porque prestamos contas ao poético, no começo de nossas vidas, quando a capacidade de pensar e de sentir foi alimentada poeticamente, fora de um livro. E seguirá assim até sermos linguagem verbal, esse desdobramento natural da qualidade dos encontros: “Teu leito me desnutriu/ Teu silêncio me distraiu”.
A Palavra Umbilical, de Luciane Slomka, é a metáfora de que estamos vivos por causa da poesia. Ela e o livro materno de onde veio é que permitiram o desenvolvimento até nomear o medo de que haja um monstro na janela ou um jacaré sob o leito. Aparentemente. No fundo, arte e ciência acreditam juntas que há um amor. É nele que está o milagre. Talvez por isso um dos últimos poemas do livro expressa com entusiasmo: “Tem um pedaço de coração embaixo da cama”.