Por Celso Gutfreind
Psicanalista e poeta, autor de “O Auge de Minha Coragem é Quando Não Ando Sozinho” (Artes & ecos), entre outros
Vinte e cinco de julho. Cem anos esta noite de comemoração do nascimento de Lara de Lemos (1923-2010). Professora, jornalista, tradutora, advogada e, sobretudo, poeta. Premiada com o Açorianos de Porto Alegre, o Jorge de Lima do Instituto Nacional do Livro, entre outras condecorações importantes. Se não chegou a ser devidamente lida por um público mais amplo, encontrou uma turma suficiente de leitores, entre poetas e interessados. Ou, como dizia Marguerite Duras, mesmo não tendo sido uma best-seller, a qualidade de seus interlocutores manterá a obra viva no próximo centenário.
Conhecia-a como leitor, ainda nos anos 1980, quando alguns gurus cantavam em uníssono: “Se queres ser poeta, leia a Lara”. Eu queria, logo lia, encantado com soluções formais inusitadas. Tentava e, tentando ainda, publiquei o meu terceiro livro, nos anos 1980. Chamava-se Retrato Falante, e eu morava em Paris, detalhes importantes para o rumo dessa prosa da poeta. É que Lara e eu fomos finalistas do então nascente Prêmio Açorianos, em 1996. Eu concorria com o Retrato; ela, com Dividendos do Tempo.
Compartilhar com Lara aquela distinção foi a minha glória maior até então e tenho dúvidas de se algo maior aconteceu depois. Estar ali com ela fazia-me sentir como um jogador esforçado dividindo o palco com a Marta à espera de quem seria a Bola de Ouro. Por estar longe, cheguei a preparar um discurso para ser lido pela minha mãe na cerimônia de premiação. Lembro que, no devaneio, desculpava-me por ter vencido e tentava expressar, de forma elegante, que a vida acabava de cometer uma enorme justiça literária. Aventava a hipótese de, à la Sartre, recusar o prêmio, não por motivações políticas, mas estéticas. Nada disso, felizmente, foi preciso. A comissão tinha os olhos de leitor no seu devido lugar: venceu, portanto, quem merecia vencer. Até a minha mãe concordou com os jurados e chegou a me enviar um telegrama dizendo que a justiça tinha sido feita. E acrescentou: “Fui cumprimentá-la pessoalmente e essa senhora tem olhos de aura boa”.
Mães costumam saber o que falam, e só mesmo a poesia para deter a fúria de um narcisismo materno. Os olhos de Lara guardavam uma aura boa, porque, guiada por eles, sua poesia também a repartia. Ela sempre foi uma artesã das palavras, capaz de um lirismo que nada deve à sua quase contemporânea Cecília Meireles, e um artesanato em seus versos que tampouco deixa desejar ao de Manuel Bandeira. Embora lúdico, demonstra um manejo verbal rigoroso, onde não há um único fonema fora do lugar. Talvez por isso a sua produção enxuta de peças enxutas não seja das mais extensas, pouco ultrapassando uma dezena de livros, entre os quais se destacam Poço das Águas Vivas (1957, estreia, Prêmio Sagol), Canto Breve (1962) e Amálgama (1974). O nosso Instituto Estadual do Livro (IEL) publicou parte de sua obra, incluindo uma Antologia Poética, já no começo do novo século.
Lembro que reescrevi O Retrato com as lições dos Dividendos de Lara, sentindo muito orgulho daquela humildade de aprender com a vencedora. Grandes poetas (Borges, Whitman, Lara) passam a vida aperfeiçoando um único livro, com a coragem de reunir palavras de forma inusitada, sem se entregar aos significados corriqueiros. Ou seja, fazem poesia, esta expressão do que sentimos em nossas estranhas, o que é sempre único, pessoal, original, logo nada banal. Nesse sentido, Lara de Lemos dedicou-se a refazer a linguagem, arejá-la som a som, sem descansar antes de encontrar a metáfora. Basta ler um de seus poemas para perceber que estamos diante de uma reinvenção, esta que precisamos fazer todos os dias para alcançar alguma parte do que estamos sentindo na vida. Refiro-me aqui à forma, arcabouço fundamental na expressão de conteúdos que, no caso de Lara, alcançam a proeza de circularem entre um lirismo pungente (o pássaro que desenrola o fio da vida e canta) e uma firme, posto que elegante, poesia política, com imagens como essa de esperar o ocaso dos tiranos.
Com a coragem de parodiar Drummond, Henriques Brito poetou que não são os ombros que sustentam o mundo, mas sim as palavras. Freud concordaria com ele, mas precisaria de Goethe ou Maiakovski com a ressalva de que, para prover tal sustento, a palavra precisa vir arejada, recomposta, ponte verdadeira entre afeto e pensamento. Já tive as obras completas de Lara, mas as perdi, entre mudanças mal organizadas e empréstimos sem anotar o nome de seus ingratos destinatários. Felizmente, cem anos depois de 25 de julho de 1923, bastam alguns cliques para acessarmos obras que podem ser entregues em nosso novo endereço. Paguei R$ 140, frete incluído, para reaver de algum sebo o acervo total da poeta, um tesouro que prometo (cumprirei?) não voltar a emprestar.
Cento e quarenta reais. Uma poeta de excelência é capaz até mesmo de enganar os números e deixar o dinheiro envergonhado de sua vil e enganosa existência.
Saiba mais
- Nascida em Porto Alegre em 25 de julho de 1923, Lara de Lemos foi uma jornalista, tradutora, educadora e poeta com mais de uma dezena de livros publicados, de Poço das Águas Vivas (1957) até Passo em Falso (2006). Órfã de pai e mãe desde criança, criada pela avó, ela estreou nas páginas da Revista do Globo, tendo a carreira como jornalista interrompida pela ditadura militar, que a prendeu nos anos 1960. Depois, viveu muitos anos no Rio de Janeiro, onde trabalhou no Ministério da Educação.
- "Toda a sua aflição, toda a sua dor – que eram (e são) a aflição e a dor de milhões de brasileiros – estão nas páginas do Inventário do Medo", escreveu Moacyr Scliar por ocasião desse livro lançado em 1997. Ele acrescentou: “Uma voz como de Lara tem de ser ouvida”.
Homenagem
- Às 18h30min de terça-feira (25/7), dia de seu centenário de nascimento, o Instituto Estadual do Livro (IEL) e o Theatro São Pedro lembrarão da poeta em um evento na Sala da Música do teatro. Haverá uma leitura de seus poemas, realizada por Antonio Hohlfeldt e Alice Kuhn, e um debate sobre a sua obra, com as participações das professoras e pesquisadoras Cinara Antunes Ferreira e Maria da Glória Bordini.