Por Maria da Glória Bordini
Doutora em Letras pela PUCRS, na Área de Teoria da Literatura, e pesquisadora do CNPq
Dividido em cinco partes, o novo livro de poemas de Celso Gutfreind é uma dádiva ao leitor. Já na partida, é perceptível o árduo trabalho com a linguagem, para torná-la sua, e a busca de expressão para os enigmas da vida. Ao longo da leitura, esse cuidado se confirma, na seleção das palavras, na suspensão das expectativas, inclusive sintáticas, em enjambements que violam sua própria natureza de ligação entre versos, nas pausas que deixam à imaginação o sentido escapadiço.
A obra exibe principalmente versos breves, acentuando o valor de suas poucas palavras. Um ritmo de rondó remete um verso a outro ou uma expressão a outra, um rondó vagaroso, como uma dança espaçosa para ser sentida aos poucos, movimento após movimento, calculadamente medidos para suscitar uma melancolia leve diante do que não se consegue evitar ou conquistar. Poder-se-ia associá-los ao efeito da Pavana para uma Infanta Morta, de Maurice Ravel, sem desmerecimento.
A primeira parte, Andarilhos, apresenta três seções. A primeira, No Parque, reúne poemas relacionados à descoberta de novos territórios, quando se sai do abrigo da casa, mas se encontra outra vez o refúgio no livro. Veja-se a recomendação de Idas e Vindas:
Sai do livro:
só na rua vê
o instrumentista
rengo
rebocar o instrumento
até escapar do silêncio.
Na segunda seção, No Mundo, o Eu lírico atende, em Fim de Moira, ao chamado:
– Vai, menino, ser viajante
de ponte pênsil e dor!
Desafiando a autoridade, o menino se emancipa, lembrando os versos de Drummond, “Vai, Carlos! Ser gauche na vida”, do Poema das Sete Faces. Já adulto, perambula pelo vasto mundo e invade os lados claro-escuros de cidades estrangeiras, no Caribe, em Cartagena, Paris, Havana, Lisboa, resgatados pela experiência ou pela contemplação da arte, nas figuras de artistas como Gaudí, García Márquez, Cervantes, Miró, que as redimem ou exaltam.
A segunda parte, Encontros, reparte-se como uma narrativa, em começo, meio e fim. Como sugere o título, examina o amor e os amores, em seus momentos jubilosos, desgastados e esgotados. A segunda seção, Meio, tematiza os vaivéns do amor, com suas perdas e achados. Na terceira seção, Fim, há mais anseio do que poderia ter sido, do que encerramento.
A segunda seção, Livre, começa evocando o lirismo triste/alegre de Manuel Bandeira, a ser praticado ante a “vida incognoscível”, feita de perdas e ganhos, valorizando tanto a razão quanto o Eros, e a própria ignorância das coisas, compensada pela capacidade de brincar. A forma do soneto outra vez reaparece, em ritmo andarilho nos versos irregulares, com predomínio das nasalizações.
Em Mar, a quarta parte do livro, o Eu defronta-se com o elemento líquido, simbólico do nascimento e da morte, da incerteza e da instabilidade. Inclui sete poemas, todos atingidos pelos mistérios das águas, que podem fazer desaparecer ou ressurgir. No terceiro, o mar dos navios negreiros é figurado pela “vida seca sem veludo”, vítima da “tirania”, que termina na lâmina que talha o mar em “duas belezas contíguas”, as quais podem ser entendidas como África e Brasil. Mas é na quinta parte, Morte, que o livro mergulha nos silenciosos abismos da finitude e de sua implacabilidade.
Leitor apurado de poesia, Gutfreind transita com facilidade entre nomes internacionais, de língua inglesa, Emily Dickinson, Kay Ryan, mas também aprecia a polonesa Wislawa Szymborska, Prêmio Nobel, o italiano Eugenio Montale e o francês Rimbaud. Não esquece os espanhóis, Lope de Veja e Antonio Machado, e os latino-americanos, os chilenos Vicente Huidobro e a uruguaia Ida Vitale. Na poesia brasileira, frequenta Cecília Meireles, Vinícius de Moraes, Murilo Mendes, Ferreira Gullar e Armindo Trevisan.
O livro de poemas de Celso Gutfreind enfeixa, nas suas diversas partes, um conjunto de saberes que se ocultam em metáforas evasivas, talvez de apreensão trabalhosa, que, de algum modo, repercutem sua experiência de terapeuta, impregnada de ternura ante as questões aflitivas da existência humana. Não se trata de uma poesia filosófica ou pedagógica: está voltada para a poetização dos assuntos cotidianos, que interessam a todos. Não hesita em violar os cânones do verso, mas o faz sem emular os modernos. É tecido de vislumbres da atualidade, apreendidos fragmentariamente, como se apresenta a nós a vida de hoje, iluminando-a ante o que mal compreendemos, e nos consolando de nossa inexorável finitude.
O Auge da Minha Liberdade É Quando Não Ando Sozinho
De Celso Gutfreind. Ed. Artes & Ecos, 116 páginas, R$ 45. Pré-lançamento com conversa com o autor neste sábado (15/4), às 10h, no Contemporâneo – Instituto de Psicanálise (Rua Casemiro de Abreu, 651, em Porto Alegre). Lançamento dia 27, às 20h, online (evento em paralelo ao curso A Poesia na Psicanálise, no Espaço Criar, que fica na Rua Tobias da Silva, 137, também na capital gaúcha). Outras informações em arteseecos.com.br.