Por Maria Carpi
Poeta e defensora pública
Na prosa da existência, recuperamos o paraíso perdido através da poesia, desde a infância. Não precisamos de carteira de identidade com foto três por quatro, de conta bancária, de atestado de saúde e residência. Nem precisamos escrever poesia, mas somente ser alfabetizados pela poesia da vida, antes das letras, do dicionário e das bibliotecas. A simples escrita do livro não atesta o coração lírico dos cantares da semente, bem como não justifica não termos contribuído com o poema do bem comum. O livro vem de sobra. Nem todos precisamos ser escritores de poesia. Tarefa árdua e que requer muita disciplina. Mas todos somos convidados a viver poeticamente.
O tempo é cíclico nas estações da poesia. Um bardo herda de outro bardo o dom de perceber o mundo e o perpassa aos poetas vindouros, nas asas do violino da poesia. Começamos por desenvolver os sentidos, como um instrumento bem temperado. Além do olfato, do tato, da visão, da audição e do paladar, a colaboração da intuição poética também traz a esse grupo a sensibilidade e a cordialidade com todos os seres e elementos.
Se nos setores públicos há a gestão da ambição e da ganância, com a exclusão de muitos dos benefícios da vida, a poesia gera um espaço para todos. Como na Ode da Alegria de Beethoven, tudo se irmana na diversidade de ritmos e rimas, no concerto de vozes da humanidade.
No início, poesia e filosofia estavam irmanadas na mesma fonte: a admiração do ser. E, na história do conhecimento, pela especialização, desceram em dois rios. Mas sempre se espelharam. E estamos agora vivendo uma época em que suas águas tornam a se cruzar, pois se necessitam reciprocamente. Há um ponto de toda a ciência em que o balde desce ao poço de águas vivas da poesia.
Há duas maneiras de falar, como há duas maneiras de pensar. Uma poética e uma lógica.
Há duas maneiras de existir, como há duas maneiras de amar. Uma poética e outra prática.
Há duas maneiras de a pólis se organizar, mas só uma é poética: o encontro dialógico da cidadania.
Erich Fromm, em Ter ou Ser, analisa duas relações de existir. No ter, eu sou o que tenho e o que consumo. Inclusive o eu faz-se propriedade do sujeito. Até os amigos designamos pelo ter. O João pelo Gol vermelho ou a Marina da cobertura da Lucas. Caminho diverso e árduo estabelece o ser. Ser é transformar-se no processo do mútuo relacionamento vivo, de pessoa a pessoa. Ser não é aparecer. No mundo do aparecer contentamo-nos com nossa imagem. No âmbito do ser, o rosto é o que conta. A epifania do rosto, como quer Levinas.
Martin Buber aprofunda o tema. Há, no existir, dois pares de palavras-princípio: eu-tu ou eu-isso. A palavra princípio eu-tu só pode ser proferida pelo ser em sua plenitude. “O reino do eu-isso tem tudo como objeto. Aquele, porém que diz ‘tu’, não tem coisa alguma como objeto”. Relação de reciprocidade.
Pela poesia, esse encontro dialógico vai mais além do eu-tu. Ele convoca um terceiro.
Também para Gaston Bachelard a poesia advém de uma ontologia direta. Ele nos fala da importância do devaneio criador. Não o sonhar vazio, mas o estar à escuta do fluxo da vida, interior e cósmico. Os sonhos acordados dos poetas. E a poesia aparece como compromisso com o ser e fenômeno de eleição e liberdade. Viver poeticamente é necessário mais ser, como pessoa e como comunidade. Mesmo que não se escreva poesia, urge vivê-la, proferi-la. E mais urge lê-la nas escolas e universidades, mesmo que a disciplina não seja Letras ou Literatura, pois ciência e poesia não se opõem. Ambas nascem da admiração, e, no dizer do cientista-poeta Bachelard, só podemos conhecer cientificamente “aquilo em torno do que sonhamos”.
Poesia e filosofia também fluem da dupla fonte: a admiração originária e a apetência de ser. Disso teve aguda consciência Heidegger, que, no final de sua obra, vai ao encontro de Hördelin e passa a habitar a linguagem, como pastor do ser.
Conhecer, viver e amar poeticamente é recusar as certezas e se transformar. Só quem pode sonhar tem cidadania plena. Sonhar é um direito como o acesso à comida, ao ar, à água, à saúde, à moradia, ao trabalho. E, principalmente, o direito à dignidade de pessoa.
Avisava Rilke, em suas cartas, ao jovem poeta: “Ser artista não significa calcular e contar, mas madurecer como a árvore que não apressa sua seiva e tranquila enfrenta as tempestades”. A didática da semente.
Sabemos que sonhar é de alto risco, mas não sonhar é ser pela metade. É não viver. É de alto risco, pois nos tornamos matéria de transformação do ser. Tornamo-nos íntimo do mistério da criação. A poesia religa, cura, interpreta o mistério e nos põe a caminho, apesar dos empecilhos e dificuldades.
Como enfatiza Maria Zambrano, na união da filosofia com poesia (Razão Poética), a poesia nasce das entranhas. Lembro também que poesia e profetas surgem do mesmo manancial. Isaias: “Dirás no teu coração: quem me gerou estes filhos, pois eu não os tinha e era estéril”.
Aos adeptos dos registros cartoriais, vale lembrar que a poesia é sem dono e sem usucapião. Na República da Poesia, não há poeta maior ou poeta menor. Apenas a medida do ritmo na respiração do mundo. Sempre cabe mais um, ao dom de conjugar a realidade na originalidade de outra visão criativa da existência.
O espaço e o tempo se juntam no corpo sonhador do poeta.
Para finalizar minha reflexão, me permito anunciar outro poeta em nossa comunidade poética, Rodrigo Carpi Nejar, com o livro Insana Lucidez, de poesia épica, confirmando que poesia é um lugar para todos.