Circula pela internet um vídeo em que uma família gaúcha se encontra paralisada de terror no interior de sua residência de madeira. É de madrugada. Objetos de limpeza boiam, vassoura e baldes vão e vêm pelas marolas, crianças dormem amontoadas na cama, cachorro permanece em vigília, com a cintura totalmente coberta pelo lodaçal, até aparecer uma vó de chinelos, encapuzada, encolhida em cima da mesa, envolvendo as pernas dobradas com as mãos. Ninguém fala. Ninguém se mexe. Ninguém dá um pio. A cena transmite o mais completo medo. Esperam pelo pior, juntos, apegados aos seus poucos móveis.
O que sobra para dizer? Ainda estamos no meio das chuvas, elas sequer terminaram. Não temos como concluir o tamanho dos estragos.
Vinte e quatro mortes já foram registradas em razão da chuva no RS, sendo 13 na contagem oficial da Defesa Civil. Pelo menos 21 pessoas estão desaparecidas. Só no bairro Galópolis, em Caxias do Sul, oito são procuradas debaixo de escombros.
8,3 mil pessoas estão desabrigadas. As principais regiões atingidas são a Central, Vale do Rio Pardo, Vale do Taquari, Metropolitana e Serra.
Não tem como trafegar pelo estado. Existem mais de 120 trechos bloqueados de estradas estaduais e federais, inclusive a BR-290, totalmente parada próximo a Charqueadas. Pelo menos, 11 pontes acabaram totalmente ou parcialmente derrubadas pela força da correnteza. Entre elas, a ponte sobre o Arroio Grande.
Cartão postais como Gramado e Canela, que atraem milhões de turistas no Dia das Mães, apresentam o acesso comprometido.
Governo decreta estado de calamidade pública e adota o tom apocalíptico.
Não há vida cultural, social e turística acontecendo, somente sobrevivência. Eventos, jogos, shows e espetáculos foram cancelados.
Dependemos de helicópteros e frotas de barcos do Governo Federal para rastrear sumiço de dezenas de moradores.
Seis meses depois da última enchente, que ocorreu em setembro, com 50 vítimas, enfrentamos uma nova enxurrada, de igual potência, porém ameaçando municípios que até então não haviam sofrido sequelas. A tragédia estendeu seus tentáculos pelo nosso mapa.
Mas não se trata mais de uma crise regional, é uma calamidade de proporção internacional. Santa Maria foi a cidade que recebeu o maior volume de chuva em todo o mundo. Lideramos o top 10 da desolação.
Os resgates não são imediatos, mas operosos e duros emocionalmente. Muitos dos moradores fragilizados não dispõem sequer de mobilidade para entrar numa canoa. A atuação do Corpo de Bombeiros ainda exige preparação psicológica para convencê-los da necessária evacuação.
Há quem demonstra resistência em ser socorrido.
Idosos não querem largar sua casinha, seus pertences, seu cantinho, porque pensam que não terão vida suficiente pela frente para recuperar seus bens. Eles se sentem vencidos pelo desespero, pela miséria súbita.
Em São Sebastião do Caí, nas margens da ERS-122, km 10, apesar da sua casa submersa, um senhor quase centenário, de 96 anos, negava-se a sair. Negava-se a ouvir os apelos. Negava-se a abandonar tudo o que conquistou a duras penas. Só chorava.
Enxergamos facilmente as águas de fora, mas não enxergamos as águas de dentro, tão volumosas quanto. Os choros infindáveis de quem perdeu tudo.