Haiti está fora do mundo. Ninguém pensa no Haiti.
Água potável está em falta, o comércio da capital, Porto Príncipe, é constantemente saqueado, residências em bairro nobre são invadidas e depredadas. Nos últimos dias, a mais recente onda de violência no país — agravada pelo anúncio de renúncia do premiê Ariel Henry — já contabilizou 14 mortos. A boçalidade generalizada vem forçando a fuga de 15 mil pessoas pelas fronteiras do país.
Desde que a brigada de paz das Nações Unidas foi evacuada, há sete anos, a nação caribenha ficou entregue ao azar das facções de oposição. Tanto que o Conselho de Segurança da ONU voltou atrás e aprovou uma resolução determinando o envio de novas forças policiais internacionais por um período de pelo menos um ano.
A crítica unânime é que as Nações Unidas não construíram um legado para o Estado haitiano (por exemplo, capacitar a polícia do país). Só taparam o sol com peneira, e agora o Haiti depende de operações de paz infinitas, tendo ainda que lidar com o avanço de cólera e surto de dengue.
Quando você se encontrar com um haitiano na capital gaúcha ou no interior do Estado, trabalhando num posto de gasolina, atendendo num balcão, servindo a sua mesa, tenha consciência de que ele não está aqui porque quer, mas porque não teve como permanecer dignamente em seu país de origem. Já sofreu um absurdo de guerras, de humilhações, de ataques em sua vida para se decidir pelo exílio.
Não se fie pelo sorriso farto, pela voz bonita com sotaque francês, pelas canções contagiantes e nostálgicas do crioulo haitiano.
Por baixo de sua alegria, corre o manancial da tristeza — deve estar cumprindo três turnos insanos de serviço para poder trazer sua família para perto.
Nunca se sentirá inteiro enquanto não socorrer um por um de seus parentes. Ele sobrevive para pagar resgate.
Dê respeito, carinho e empatia para aquela existência tão calejada de privações.
Eu recordo uma das cenas mais ignominiosas de xenofobia e racismo de que tive notícia num espaço público.
Numa academia de musculação no bairro Petrópolis em Porto Alegre (que, aliás, fechou as portas após um incêndio), um dos matriculados espalhava suas fezes nas paredes do banheiro para humilhar o servente haitiano. O ato vil e repugnante tinha o firme propósito de fazer o funcionário pedir demissão. Como o vestiário masculino não contava com câmeras de segurança e vivia cheio, o agressor acabou saindo impune de sua monstruosidade.
O servente, por semanas a fio, até ser descoberto o escândalo, foi posto à prova silenciosamente. Jamais denunciou o ocorrido, jamais deixou de fazer o seu trabalho. Ele morria de medo de não ter de onde tirar recursos para salvar os seus afetos.
A crueldade humana não tem limites. Todo preconceito é violento, todo preconceito é supremacista, especialmente quando fere quem é vulnerável e indefeso.
Há trinta anos, Caetano Veloso pedia atenção para o Haiti. Tanto tempo passou desde lá, mas a realidade não datou a sua canção.
“Pense no Haiti.
Reze pelo Haiti.
O Haiti é aqui.
O Haiti não é aqui.”