Ninguém levanta a bandeira do Haiti em manifestações e nos shows dos artistas engajados. Durante 13 anos, o Brasil ocupou militarmente o país. Bilhões de dólares foram investidos na tentativa de estancar o caos na região. Hoje, milhares de pessoas são assassinadas pelas gangues que disputam o poder em Porto Príncipe. O jornalista Rodrigo Lopes definiu o cenário: “O mundo abandonou o Haiti”.
Estive duas vezes lá. A primeira, na década de 1990, quando os Estados Unidos invadiram o país. Estava no aeroporto da capital e testemunhei a chegada dos primeiros aviões com as tropas. Ao meu lado, uma repórter americana buscava um entrevistado: “Alguém de Nova York? Alguém de Nova York?”, gritava, enquanto os jovens soldados, olhos esbugalhados, assumiam posições no saguão e no pátio vazios. Lá pelas tantas, um vigia civil do aeroporto, o único que não sabia da invasão, chegou de bicicleta. “Militar haitiano se aproximando”, berrou um oficial dos EUA. No mesmo instante, uma dúzia de armas foram apontadas para o haitiano franzino, desarmado e apavorado, que jogou a bicicleta no chão e as mãos para cima.
Alguns dias depois, eu estava em Cité Soleil, uma das mais miseráveis favelas no mundo, quando o primeiro comboio militar dos EUA chegou. Os haitianos aplaudiam e gritavam, felizes. Era a liberdade, acreditavam. Em um terreiro de vodu, madame Simone, lembro do nome até hoje, mantinha um litrão de Coca-Cola no seu altar de oferendas, entre ossos humanos e flores murchas. “É para dar sorte aos americanos”, me explicou.
No começo dos anos 2000, voltei ao Haiti, dessa vez convidado pelo Exército brasileiro. Testemunhei o esforço e a dedicação dos nossos militares na busca de estabilidade em um país destroçado pela corrupção, por um terremoto, pela miséria e pela violência. Tudo havia mudado. Para pior. Enquanto eu entrevistava um candidato à presidência, uma pancadaria começou na sala ao lado. Fui retirado, às pressas, por uma saída lateral.
Os anos passaram, mas pouco mudou no Haiti.
A primeira pergunta é: de que valeu tudo aquilo? A segunda: o que faremos agora? Nada, pelo jeito. O conflito do Haiti, aqui perto do Brasil, não rende holofotes na mídia mundial, nem discursos oportunistas sobre supostos mocinhos e bandidos. Mulheres e crianças estão sendo assassinadas a duas horas de voo do território brasileiro. Quem se importa? E por que se importaria, se não há a quem culpar além de nós mesmos?