Lamento quem nunca empurrou seu carro. É um antecedente maior de humildade. Você aprende a suportar a opinião dos outros depois do vexame no meio da rua. Cria um escudo contra falsas expectativas, põe um colete contra as críticas. Não será tão influenciável quanto antes, não sofrerá buscando manter as aparências. Estará vacinado para tropeços na calçada, pisões em poças de chuva e micos derramando o conteúdo de copos na mesa.
Trata-se de uma libertação dos condicionamentos, o momento em que você assume a sua pobreza e não liga mais para censuras alheias.
Não vai querer ostentar, mentir, fingir que tem mais posses do que realmente tem. Encontra a honestidade da sua essência, o riso da desgraça, a gargalhada na mais ferrenha adversidade.
Entende ainda que não existe como mandar na existência, a onipotência é uma miragem. Haverá sempre dias bons e ruins, objetos quebrados quando mais precisar deles e aparelhos de uso rotineiro pifando na sua hora mais atrasada.
Todo desespero é apenas falta de experiência. A calma vem da reincidência.
Eu já fiquei parado em avenidas movimentadas, seja com o meu primeiro Fusca, seja com o meu segundo Gol.
Todos que passavam ficavam com pena de mim enquanto tentava forçar o veículo a “pegar no tranco”. A cena gera mais misericórdia do que o triângulo à beira da estrada.
Quando morria a bateria, ou o motor não ligava porque o carro havia adormecido no sereno, o negócio era chamar os caronas a dar uma mão. O povo corria do lado de fora, de um modo cômico, até o carro ganhar impulso numa lomba.
Com os gritos de incentivo (“vai”, “agora”, “liga”), eu tinha que girar a chave na ignição no movimento certo, na segunda marcha, soltando a embreagem rapidamente e pisando no acelerador. Ai se eu errasse e desperdiçasse alguma ladeira. Ninguém me perdoaria. Ninguém empurraria o carro duas vezes. Ninguém admitiria condutor boca-aberta.
Eu fiz grandes amigos empurrando o carro. Talvez seja a melhor técnica para confirmar amizades: partilhar um vexame.
Com o arranque, a claque de apoiadores vibrava e se deslocava, ligeira, para entrar pela porta quase em movimento.
O automóvel tossia ao recuperar a sua vida. Parecia que ele cuspia para fora um caroço que entalava na garganta do carburador.
A fumaça branca sinalizava a vitória, consagrava o pontifício da ressurreição, assegurava a esperança de que chegaríamos ao nosso destino. Pensaríamos novamente no assunto na volta. Até lá, comemorávamos a batalha vencida.
Meu amigo Zé me superou ao emplacar o modo mais avançado de partida, como motorista que auxilia a trupe no empurrão e em seguida assume o volante, numa peripécia digna de Ayrton Senna na chuva. Ele também conta que, pós-pane, conversava com o veículo, acalmava-o, pedia consideração a ele: se houvesse um novo apagão, que fosse numa rua mais tranquila.
Quem já encalhou jamais deixará de prestar socorro a motorista solitário. Acordará a empatia da sua antiga aflição.
Eu fiz grandes amigos empurrando o carro. Talvez seja a melhor técnica para confirmar amizades: partilhar um vexame.