Hoje é o primeiro dia do resto de nossas vidas.
Tente achar uma canção que não seja relevante, revolucionária e irreverente de Rita Lee. Ela jamais errou em 60 anos de carreira. Era uma antena da liberdade, um tsunami de originalidade.
Quem não levantou as mãos para cima, mexeu a cintura, saiu do lugar, espantou a pasmaceira com Agora Só Falta Você, Chega Mais, Doce Vampiro, Lança Perfume e Baila Comigo? Nunca mais entrei num cinema, por exemplo, sem me lembrar de sua letra. "No escurinho do cinema / Chupando drops de anis / Longe de qualquer problema / Perto de um final feliz".
Virou trilha permanente de qualquer sessão. Ela lia as nossas emoções, brincava com as nossas expectativas, antecipava os nossos pensamentos. Atuava como uma telepata nos guiando para o futuro.
Suas músicas contam histórias, são videoclipes desde sempre. Há uma narrativa que nos ajuda a entender o nosso lugar no amor ou no destino, a aceitar a solidão da escolha, a reunir a coragem da diferença.
Foi ela que retirou o estigma de ócio dos artistas, removeu o rótulo de louco da cara dos intensos, apagou a linha reta das mãos dos viajantes. Quantos jovens de diferentes gerações não partiram com uma mochila nas costas, a enfrentar o mundo, cantando para si mesmos: "Você é a ovelha negra da família / Agora é hora de você assumir"? Levante a mão comigo!
É justamente a ovelha negra que nos salvou do rebanho. A cantora puxou pessoas entaladas em armários, salvou vocações atoladas no tédio dos escritórios. O melhor de Rita Lee teria que vir com mais de cem hits. Só tem clássicos.
Cabelos pintados ou naturais, cara limpa ou maquiada, ela é a maior roqueira que existiu no país. Não poderia ter morrido. Não poderia. Deveria ser concedida a imortalidade a algumas exceções da nossa condição, quando um talento muda definitivamente o comportamento e a cultura muito além dos modismos.
Simplesmente não confie que ela faleceu nesta segunda-feira (8), aos 75 anos, como consequência do câncer de pulmão, diagnosticado em 2021. O fim é uma formalidade totalmente dispensável para aquela que teve um pacto apaixonado com a metamorfose.
Rita Lee casou a efervescência do rock com o tropicalismo. Liderou uma das melhores bandas brasileiras, Os Mutantes, de 1966 a 1972, angariando com a justiça do tempo a idolatria de Kurt Cobain, David Byrne, Jack White e Beck.
Em seguida, criou canções na carreira solo com enorme influência para a independência feminina. Ganhou, em 2001, o Grammy Latino de Melhor Álbum de Rock em Língua Portuguesa, afora cinco indicações ao prêmio, e recebeu, em 2022, o prêmio de Excelência Musical pelo conjunto da obra.
Esteve nos principais eventos musicais da nossa história, como o 3º Festival de Música Popular Brasileira da Record, em 1967, e o primeiro Rock in Rio, em 1985.
Em vez de abrir o show de The Rolling Stones, ela merecia que a banda britânica abrisse o seu show.
Nunca teve imitadores. Jamais alguém ousaria parodiá-la. Ela é o nosso Elvis sem sósias. Nosso único espécime da passionalidade.
Baby baby, não há como cansar de chamar Rita Lee de volta ao palco, porque nos encontramos a partir dela, jamais estaremos perdidos depois dela. Eu acredito no bis. Gente assim retorna de um jeito ou de outro.