Não podíamos ficar longe de nosso cachorro na calçada. Não só pelo receio de que ele fosse atropelado ou fugisse.
Havia a assombração da carrocinha.
Funcionários do canil municipal, fardados e de boné, com uma puçá gigante, rede para caçar borboletas, levavam embora os cães abandonados pela cidade.
Não sei se essa descrição confere com a realidade, mas eu sofria com a lenda urbana. Era mais assustadora do que o Velho do Saco, que capturava crianças desobedientes, ou seja, crianças que não limpavam o prato, crianças que faziam birra em supermercado, crianças que gritavam na mesa.
Lembro-me da ameaça dos pais diante da nossa distração com os bichinhos na praça:
— Olha que vem a carrocinha!
A carrocinha representava o presídio dos nossos animais, um lugar onde eles terminavam confinados em grades e viviam a amnésia penosa de suas famílias. Se ninguém os procurasse ou registrasse a sua ausência rapidamente, existia ainda o perigo de desaparecerem, virarem sabão amarelo (até hoje detesto aquelas barras do tanque) ou serem transferidos para alguma paragem remota.
A esquina tornava-se portal do misterioso e implacável recolhimento. Jamais olhávamos a conjunção das ruas de modo positivo.
Meu cachorro não deveria permanecer sozinho por aí de modo nenhum, não poderia passear à toa, senão seria amarrado e posto num furgão com cela, e eu não o encontraria de novo.
Preparei coleira colorida para ele, com meu endereço e telefone. Dava banho todo dia para que não parecesse sujo e anônimo. Explicava o caminho de casa, largando ração no jardim para fixar o lugar.
A carrocinha sitiou os meus pesadelos de pequeno. Eu suava frio, arregalava os olhos, engolia os pensamentos em silêncio aflitivo, porque os adultos diziam que o motorista não teria compaixão com a solidão canina.
Sofria com a paranoia dos caçadores diabólicos de mascotes pela madrugada.
Observava quem abria o portão de casa para que logo fechasse. Eu me arrepiava com cada visita e a possibilidade da porta encostada.
Protegia meu vira-lata mais do que brincava com ele.
Era uma outra educação, uma outra cultura naqueles anos de chumbo da ditadura: provocar respeito pelo medo.
Temíamos aos pais, temíamos ir para o inferno, temíamos a Deus, temíamos os prazeres, temíamos a liberdade, temíamos conversar alto na rua, temíamos a carrocinha.
Até obedecíamos. Mas temor nunca será amor, sempre é trauma.