A enchente que causou mortes e destruição no Rio Grande do Sul em abril e maio é apenas mais um reflexo das mudanças climáticas que afetam a rotina da Terra. Especialistas argumentam que a influência da ação humana na atmosfera é notável: alterou a temperatura e o ciclo da água.
A situação ameaça a biodiversidade e a agricultura. A saúde humana também já é impactada pela chuva excessiva e estiagem atípica, enquanto cientistas estudam os prejuízos para a aviação em um mundo com mais calor.
O debate ocorre no momento em que o planeta registra recordes de temperatura e as notícias sobre eventos extremos se multiplicam: seca histórica na Amazônia, inundações na África e calor extremo na Ásia são exemplos de crises recentes.
Novos recordes
Quebras de recordes da temperatura média global foram comuns em 2023 e 2024, segundo o Copernicus, centro de monitoramento do clima da União Europeia.
- Maio deste ano foi o mês mais quente desde 1850, período de início dos dados
- 2023 foi o mais quente desde o início das medições do centro
- Já a temperatura média global para os últimos 12 meses –entre junho de 2023 e maio 2024 – estabeleceu um novo recorde: 0,75°C acima da média de 1991-2020 e 1,63°C mais alto do que o período pré-industrial (1850-1900)
— A explicação está relacionada a fatores como a queima de combustível fóssil que causa o efeito estufa, o desmatamento e a perda da biodiversidade. Os oceanos estão mais quentes, as geleiras estão derretendo e a temperatura média está mais alta. A consequência pode ser ondas extremas de calor, chuva ou estiagem — resume Francisco Aquino, doutor em Climatologia e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A alta de 1,63ºC no clima global não pode ser comparada a uma mudança na temperatura que observamos em uma cidade, por exemplo, que pode variar uma dezena de graus em um único dia. Conforme Aquino, um modo de compreender a temperatura acima da média na Terra é relacionar à situação de um quadro febril.
— Uma pessoa começa a sentir desconforto se a temperatura corporal dela fica 1ºC acima do normal. É parecido com o planeta. Se subir 1ºC no aquecimento médio da Terra, aumenta entre 4% e 6% a umidade, o que causa chuvas intensas — acrescenta Aquino.
Os oceanos estão mais quentes, as geleiras estão derretendo e a temperatura está mais alta. A consequência pode ser ondas de calor, chuva ou estiagem.
FRANCISCO AQUINO
Climatologista e professor da UFRGS
O estudioso acrescenta que o El Niño – aquecimento anormal do Oceano Pacífico equatorial – contribuiu para os desastres vividos no Estado nos últimos meses – além da tragédia mais recente, também a do Vale do Taquari em setembro do ano passado.
Ele ressalta, no entanto, que o fenômeno não foi o único responsável: a chuvarada em municípios gaúchos em 2023 e 2024 é uma síntese do momento da Terra, projetada pela ciência na segunda metade do século 20.
— A evaporação da água de rios, lagos e oceanos forma as nuvens. Quando sobe a temperatura, que é o que está acontecendo no planeta, você aumenta também a capacidade da atmosfera reter a água, o que gera mais nuvens. É isso o que causa a intensificação dos eventos extremos. A chuva que tivemos no Rio Grande do Sul é um retrato da mudança climática — acrescenta.
Saúde cada vez mais em risco
A saúde humana é afetada de diversas maneiras pelas alterações do clima global, segundo Evangelina Vormittag, doutora em Patologia pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Instituto Ar. Ela cita que uma inundação gera afogamentos e ferimentos, enquanto incêndios causam mortes e queimaduras. Somado a isso, há problemas para a saúde mental da população, desidratação e estresse térmico.
Outras adversidades são as doenças infecciosas, como leptospirose e hepatite A, transmitidas pela contaminação da água. Eventos extremos também podem causar prejuízos na agricultura, com fome e desnutrição como consequências. A médica afirma temer que as mudanças climáticas causem crises sanitárias similares à covid-19:
— Em um bioma que está destruído ou impactado, novas doenças vão surgir, vírus de outras espécies poderão causar problemas para o ser humano. É algo que pode acontecer.
O Instituto Ar é uma ONG que visa conectar a saúde ao debate climático. Para Evangelina, não é possível separar os assuntos: alguns dos gases que causam o aquecimento são prejudiciais ao ser humano.
Turbulência em voos
Um estudo da Universidade de Reading, na Inglaterra, afirma que as turbulências em voos cresceram à medida que a temperatura do planeta aumentou. O trabalho identificou que as ocorrências severas tiveram acréscimo de 55% em uma rota do Atlântico Norte, entre 1979 e 2020.
Os pesquisadores afirmam que o ar mais quente ocasionado pelas emissões de dióxido de carbono (CO2) foi o responsável. Em maio, um passageiro morreu e mais de 30 ficaram feridos durante uma turbulência em um voo de Londres para Singapura.
— O aquecimento médio das temperaturas afeta diretamente a variação da densidade do ar, que determina a capacidade de sustentação das aeronaves — explica Marcelo Zanetti, professor do curso de Engenharia Aeroespacial da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Um futuro com a atmosfera mais aquecida significaria mudar a construção dos aviões: alguns veículos não poderiam ser utilizados sob calor extremo, enquanto outros precisariam de mais potência nos motores, o que aumentaria o uso de combustíveis.
Zanetti é cauteloso ao ligar o aumento de turbulências às temperaturas recordes: o aquecimento global pode ser o responsável, mas é preciso considerar que há mais voos, o que dificulta o trabalho de traçar rotas livres de intempéries.
Pressão sobre o campo
Alterações no tempo perturbam também o setor agrícola, com prejuízos na produção, economia e segurança alimentar.
— Perdas por conta da seca vêm acontecendo desde 2010, afetando principalmente a soja. Em 2007, foram lançados os primeiros alertas para a Região Sul — observa Eduardo Assad, engenheiro agrônomo especializado no tema.
A alta na temperatura e as alterações na chuva podem propiciar a multiplicação de insetos e patógenos. A seca afeta principalmente soja, milho, café e laranja, enquanto a chuva excessiva prejudica todas as culturas. As mudanças climáticas já alteraram, inclusive, o cronograma de plantio e colheita no país.
Ameaça à biodiversidade
Helga Correa, da ONG WWF-Brasil, afirma que a mortandade de animais aquáticos no Amazonas, em 2023, resume a alteração global no clima: cerca de 300 botos morreram em lagos do Estado nortista durante uma seca histórica na região. Ambientes com aquecimento atípico bagunçam a rotina de animais que evoluíram e se adaptaram a um padrão de calor. Ela cita o exemplo de tartarugas:
— Nascer macho ou fêmea depende do calor. Na mudança climática, muda também o balanço da razão sexual, de quantos machos e fêmeas haverá nas ninhadas.