Após dois anos de um cenário de estiagem absoluta, que secou a Lagoa do Peixe, em Tavares, no Litoral Médio, seus 35 quilômetros voltaram a ficar cheios d’água e a emanar vida. Os animais mortos e campos vazios foram substituídos por aves migratórias, peixes e crustáceos (veja fotos comparativas abaixo). Agora, os 200 pescadores com permissão para atuar no local também voltaram a capturar camarões.
A lagoa — que, na verdade, é uma laguna, pois tem ligação com o mar — começou a secar em 2021, quando teve início o fenômeno meteorológico La Niña, que causa seca na Região Sul e que persistiu até 2023. O quadro foi se agravando ano após ano. Em 2022, 50% da área da lagoa do Peixe foi afetada; em 2023, 90%. Agora, após a forte chuva no Estado nos últimos meses — em função do El Niño, que provoca chuva no Sul, conforme especialistas —, a lagoa tem se recuperado. O nível médio da água está em 44cm – historicamente, varia aproximadamente entre 30cm e 50cm em condições normais com a barra aberta (entenda este processo abaixo).
A vida silvestre já retornou ao local — tanto a fauna aquática como aves migratórias e residentes, conforme o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que administra o Parque Nacional da Lagoa do Peixe. Durante a passagem da reportagem de GZH pelo parque, guiada pelo chefe dos brigadista Marcelo de Souza, foi possível avistar flamingos, talhamar, batuíra, pernilongo de costas brancas, maçarico de bico virado, além de outras espécies.
— Então, a gente acredita que sim, que a lagoa se recuperou totalmente — afirma Lisandro Signori, analista ambiental e chefe substituto do parque.
Além disso, a relação entre a questão climática e a vida existente no local é muito forte, ressalta. No momento em que chove e que o canal para o mar está aberto, misturando a água e trazendo larvas, isso gera um “caldeirão de vida”, normalizando a situação rapidamente. Do mesmo modo, o quadro inverso, com perda de vida, também é muito rápido.
Entretanto, a pesquisadora do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora em Geociências e climatologista Venisse Schossler, que estuda a área há mais de 15 anos, alerta que, ainda que a lagoa esteja com a lâmina d’água normal, esse fator pode não ser suficiente para a recuperação em uma região com vento constante e associada a um lençol freático. Nos últimos anos, no inverno, a lagoa conseguia se recuperar parcialmente com a chuva, mas não o suficiente a nível de lençol freático e solo, secando rapidamente nos meses mais secos – ou a água evaporava, ou ia para o lençol.
— Não quer dizer que, se passar alguns meses com chuva abaixo da média, não seque rápido, porque também tem de ter excedente de umidade no solo, não adianta aparentar estar cheia, mas o solo não ter se recuperado. Meu parecer é que está com a lâmina normalizada, porém ainda não se recuperou completamente de um período tão longo em que ficou seca — avalia, explicando que solo úmido é sinônimo de recuperação do lençol.
Pesca ainda enfrenta desafios
Desde o dia 3 de janeiro, os pescadores estão com as redes na água para capturar o tradicional camarão. A safra costuma durar de cinco a seis meses. Contudo, relatam que o tamanho e a quantidade do animal estão menores neste ano. Eles também não têm visto peixes que costumam aparecer, como tainhas e linguados, apenas peixes pequenos.
— Agora tem água, mas o camarão é pouco, e também tá meio miudeiro. Tem que crescer mais. Mas vamos esperar até quando? O pescador vive só da pesca. Tem a aposentadoria, mas resolve pouco. O pescador, coitado, é muito sofrido — afirma Pedro Carassai Neto, 61, morador de Capororocas e pescador há 30 anos na lagoa, acampado com cerca de outros 10 pescadores no lagamar Costa, um dos oito que compõem a lagoa.
— Ano passado, eu pesquei 17 noites aqui, só. Daí não deu mais, secou mesmo. Visto os outros anos, está boa. Saiu meio devagar, mas para mim deu uma melhorada, não foi para todos. É assim, às vezes dá de um lado, do outro lado já nega. Esse ano está com previsão de melhor pesca. Eu acredito que os próximos dois meses agora vão ser melhores — relata Carlos Teixeira, 64 anos, natural de Capão da Areia e pescador a vida toda.
Na primeira noite de pesca do ano passado, os pescadores capturaram cerca de 150 quilos. Na desta safra, variou de cinco a 25 quilos, segundo relatos. Agora, o cenário parece estar melhorando. Pelo fato de a safra estar reduzida, os compradores estão pagando mais, o que auxilia os pescadores. Há a crença de que a safra deve ser mais distribuída ao longo dos meses de pesca. O mesmo deve acontecer com o camarão na lagoa: em 2023, concentrou-se em uma região muito pequena devido à estiagem; neste ano, está mais distribuído pelo espaço. Por ora, eles seguem na expectativa de que a pesca vai melhorar.
Professor do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Felipe Dumont lembra que a safra depende da data de abertura da barra – em 2023, ocorreu no final de julho. A abertura do canal para o mar não acontece facilmente de forma natural. Assim, uma vez por ano, nos meses de inverno, máquinas abrem a barra da lagoa para a saída de água doce – evitando inundação da Estrada do Talhamar, de campos com gado – e entrada de água salgada, trocando nutrientes e favorecendo a proliferação de camarões e peixes.
O pesquisador acredita que a entrada de larvas pode ter acontecido há cerca de um mês e meio e, por isso, os animais ainda estão com comprimento pequeno.
— Possivelmente a água da lagoa está mais doce do que o normal, o que prejudica o crescimento. Depois de entrarem na lagoa, levam de três a cinco meses para atingir 9cm — acrescenta, listando outra possibilidade.
Ele pontua ainda que alguns camarões da safra anterior podem ter ficado presos na lagoa ao invés de sair, como é normal, e, agora maiores, influenciam na data de abertura da safra, que é decidida pelo tamanho. De acordo com o professor, os camarões pequenos ainda vão se desenvolver, pois crescem rápido em condições favoráveis. Além disso, até o fechamento da barra, larvas podem continuar entrando – o que, de fato, pode resultar em uma safra mais distribuída ao longo dos meses.
Minimizando danos
A meta do ICMBio para 2023 era intensificar os estudos técnicos sobre a lagoa, para entender como enfrentar os efeitos das mudanças climáticas. Durante a estiagem do ano passado, o instituto instalou réguas medidoras nos lagamares para monitorar o nível. Ao todo, são 32. Além do monitoramento de aves, de animais marinhos na praia e do tamanho do camarão, também passou-se a medir a salinidade da água. O ICMBio também acompanha as pesquisas de universidades. É o que o órgão consegue fazer, conforme Lisandro Signori:
— São dados que vão ajudar o ICMBio a planejar melhor para minimizar danos. Evitar a seca a gente não tem como, porque é uma questão da natureza e da mudança climática. O que nós podemos fazer é ter dados melhores para tentar se prevenir e tomar uma melhor decisão no caso de previsão de um outro fenômeno de estiagem.
Saber a flutuação do nível da lagoa permite relacioná-lo à chuva com maior precisão e gerir melhor a abertura artificial da barra, em função do nível e da previsão climática – para decidir se já é hora de abri-la utilizando máquinas ou deixá-la fechada por mais tempo para preservar o nível de água. A decisão hoje é tomada pelo Grupo de Trabalho de Manejo da Barra (GTMB), que reúne, em parceria com o ICMBio, representantes dos pescadores, das prefeituras de Tavares e Mostardas e dos proprietários de terra.
A pesquisadora Venisse Schossler aponta que outra medida válida para minimizar danos seria uma melhor vegetação nativa nas dunas, pois ajuda a fixá-las, evitando assoreamento, além de preservar a composição química da água. A pesquisadora também considera importante um monitoramento do clima e uma reestruturação do órgão que administra o parque, agregando uma equipe multidisciplinar, em meio à realidade das mudanças climáticas. Sem recurso financeiro ou humano, ressalta, é possível fazer muito pouco.
Abertura da barra gera polêmica
Apesar de períodos de seca não serem incomuns, a estiagem extrema e grave registrada na Lagoa do Peixe, que se estendeu por dois anos, foi atípica e um fato inédito. Alguns fatores estão relacionados a essa ocorrência, segundo a pesquisadora, sendo o climatológico (La Niña) o principal. Porém, além disso, a lagoa não conseguiu se recuperar; tem ocorrido uma intensificação do vento de nordeste, que transporta areia seca e se agrava na estiagem, assoreando a lagoa; e, com o canal aberto no inverno, ventos de sudoeste podem empurrar a água para fora.
A abertura do canal fora de época, sem um prognóstico, também tem um peso importante – já que, da mesma forma que capta água do mar, a água da lagoa também sai, podendo levar o que restou. Venisse chegou a alertar que a abertura precipitada da barra poderia agravar a situação em caso de estiagem.
— Não é que não possa abrir o canal, sei que eles precisam, mas antes de fazer isso, essa decisão tinha de ser muito bem estudada. Nos últimos três anos, não foi. Não esperavam ver se ia abrir sozinho, porque satura o lençol freático e abre — argumenta.
A volta do La Niña
Há uma projeção ainda incerta que indica o retorno do La Niña a partir de setembro deste ano, de acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Porém, como ainda há a atuação do El Niño, com um período mais longo de chuva acima da média, seguido pela chuva de inverno, existe uma chance de o solo ter se recuperado totalmente até lá, já que a situação de umidade está quase normalizada.
— Este ano está tudo sob controle, dificilmente a gente vai encontrar um quadro como nos anos anteriores, mesmo que volte (o La Niña), porque não vai dar tempo da seca atingir a lagoa tão rápido. Teria de ter La Niña muito intensa para secar tão rápido como outras vezes — elucida Venisse, acrescentando que a persistência por mais anos, novamente, poderia afetar a lagoa novamente.
O parque
Criada em 1986, a unidade de conservação ambiental Parque Nacional da Lagoa do Peixe é conhecida como um santuário de aves migratórias da América do Norte e da Europa, que passam pela região para descansar e se alimentar entre setembro e março. É também uma área de proteção das amostras dos ecossistemas litorâneos no RS. Pelo local, passam ainda animais ameaçados de extinção, como o peixe burriquete, o tuco-tuco das dunas e aves como gavião-cinza.