Antes mesmo de acessar o pórtico de entrada do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, em Tavares, no Litoral Médio, é possível visualizar, do alto da Estrada do Talhamar, a principal via de acesso, um grande deserto no lugar dos 35 quilômetros de extensão da Lagoa do Peixe. É o segundo ano consecutivo em que a estiagem afeta a fonte de sustento para 201 pescadores da região. O fato é considerado inédito até para os moradores mais antigos. Ninguém lembra de a lagoa secar dois anos seguidos. E desta vez, a situação é ainda mais cruel: se em 2022, o grande espelho de água evaporou em 50% da área, agora, já chega a 90%, com risco de ficar muito próximo dos 100%.
A região da lagoa enfrenta a mesma estiagem que já levou quase metade das cidades do Rio Grande do Sul a anunciarem situação de emergência. Segundo dados da Defesa Civil, 240 prefeituras declararam que vão colocar a medida em prática — o que representa 48% do total de municípios gaúchos.
Encravada no parque sob gestão do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Lagoa do Peixe é dividida em oito setores de pesca — Velha Terra, Costa, Lagamarzinho, Paiva, Barra da Lagoa, Formiga, Capitão e Chica, a Lagoa do Peixe ainda tem dois deles com água (Velha Terra e Barra da Lagoa). No setor Costa, o mais próximo da Estrada do Talhamar, uma lâmina de menos de 15 cm de profundidade de água quente, que se estende por cerca de dois quilômetros de extensão, tem sido disputada por peixes, crustáceos, aves e pescadores.
Na tarde de segunda-feira (6), a equipe de reportagem de GZH testemunhou em cerca de 40 metros de extensão a terra ainda úmida, mas já começando a secar na direção do que restava de água. No mesmo setor, a 438 metros da estrada, um caíque repousava solitário em solo árido, como se o seu proprietário tivesse esperança de ver a água voltar ainda no verão.
Gestor do parque, Riti Soares dos Santos calcula que, se não chover pelo menos 100 milímetros nos próximos 10 dias (e não há previsão para isso) e não houver ventos soprando de Sul para Norte, o setor Costa secará por completo. De acordo com a Climatempo, para a região de Tavares há previsão de 15 milímetros de chuva para esta quarta (8) e outros 10 milímetros para quinta (7), que podem nem cair onde é necessário. Na sexta-feira da semana passada, por exemplo, choveram cerca de 70 milímetros na cidade, mas nenhuma gota caiu sobre a lagoa.
Com água pelo tornozelo, o pescador Cleiton Lopes Riquinho, 35 anos, decidiu recolher na tarde de segunda-feira (6) as 45 redes da família, que haviam sido instaladas no setor Costa. Em dezembro, ele ainda conseguiu retirar quase 200 quilos de camarão por dia. Mas, desde o final de janeiro, quando reuniu oito quilos de camarão, não conseguiu mais pescar.
— Eu venho aqui desde menino e não lembro de dois anos seguidos de seca. É uma coisa muito séria — comenta Cleiton.
Indo na direção Sul, o setor Lagamarzinho mais parece um deserto com restos de milhares de crustáceos e tainhas em formação, que poderiam ser pescadas no inverno. Em meio ao cheiro de putrefação, as redes de camarão seguem penduradas no nada. A régua de 1,60m de altura, instalada no meio da lagoa para medir o nível de água, está completamente seca. Em tempos de barra fechada, a profundidade é de 1,15m. Em tempos de barra aberta, pode ficar em 50cm.
Barra da Lagoa do Peixe foi aberta em agosto
A Lagoa do Peixe que, na verdade, é uma laguna, por ter ligação com o mar, tem um canal, chamado de barra, cuja abertura para o oceano não ocorre de forma natural com facilidade. Ele só abre naturalmente se há um excedente de chuva ou se houver maré de tempestade, com as ondas batendo, lavando a praia, tirando sedimentos e fazendo subir a maré em conjunto com a pressão de dentro do corpo d'água, empurrando a água para fora porque a lagoa está muito cheia.
Até por demorar para abrir de forma natural, uma vez por ano, nos meses de inverno, máquinas das prefeituras de Tavares e de Mostardas, com o aval do ICMBio, abrem a barra da Lagoa do Peixe para a saída de água doce, evitando inundação de campos de gados localizados à margem da lagoa. A abertura também permite a entrada de água salgada, a troca de nutrientes e o favorecimento da vida marinha dentro da lagoa — ajudando na proliferação de camarões e peixes.
Em 2022, a lagoa ficou com partes secas até março, quando a chuva voltou à região e cobriu a terra seca. No início de agosto, quando a água passou sobre a Estrada do Talhamar, mas a quantidade de chuva ainda não era suficiente para acabar com o déficit hídrico na região, o Grupo de Trabalho de Manejo da Barra (GTMB) tomou a decisão de abrir de forma artificial o canal que liga o mar à Lagoa do Peixe. O grupo, que trabalha em parceria com o ICMBio, reúne representantes dos pescadores, das prefeituras de Tavares e Mostardas e dos proprietários de terra com o objetivo de discutir as questões relacionadas à lagoa. No geral, a abertura artificial da barra costuma ocorrer entre o final de agosto e o início de setembro.
Na época, em entrevista a GZH, o gerente regional Sul (GR5 Sul) do ICMBio, Isaac Simão Neto, explicou que, antes da decisão, os representantes ouviram a opinião dos moradores locais e tiveram expostas as questões técnicas que poderiam impedir a abertura do canal, como o déficit hídrico da região e a presença do La Niña – que causaria temperaturas mais altas e chuvas abaixo da média no Estado nos próximos meses.
— Nossa meta para este ano é intensificar os estudos técnicos sobre a lagoa, para entender como enfrentar os efeitos das mudanças climáticas sobre ela — destaca o gestor do parque, Riti Soares dos Santos.
A doutora em Geociências Venisse Schossler, que é pesquisadora do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e estuda a área há quase 15 anos, foi uma das profissionais que alertou sobre a precipitação em abrir a barra. Conforme o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o déficit hídrico de janeiro de 2021 até agosto do ano passado havia sido de 1.342 milímetros. Segundo a pesquisadora, a chuva acumulada no trimestre maio-junho-julho de 2022 foi de 273 milímetros, número muito aproximado do mesmo trimestre de 2021, quando choveu 276 milímetros no período.
Venisse chegou a sugerir que o prudente seria esperar o final do inverno para decidir, pois havia o alerta de que o problema poderia se agravar neste verão, época em que a evapotranspiração aumenta e os ventos ajudam no assoreamento. Ainda assim, os integrantes do GTMB optaram por seguir fazendo a abertura, como sempre havia ocorrido.
— Não surpreende que a lagoa tenha secado, pois o alerta foi dado no ano passado. Não tem como acreditar somente num volume de água, se não há um levantamento do balanço hídrico do lençol freático. Era uma questão que precisaria ser avaliada antes de abrirem o canal da barra — ressalta Venisse.
Venisse observou no Monitoramento de Secas e Estiagens que, entre agosto de 2022 e 31 de janeiro de 2023, a região da Lagoa do Peixe estava com uma seca considerada excepcional. O quadro vem se agravando há pelo menos três anos.
— A umidade do solo na superfície e na subsuperfície estava com zero milímetros de estoque de água. Tudo o que chegou de água foi apenas absorvido pelo solo por conta do déficit. A quantidade de chuva prevista não daria conta de estocar na superfície — explica.
Entre 1 de novembro de 2022 e 31 de janeiro deste ano, choveu somente 50% do esperado na região, segundo Venisse, com base em dados técnicos.
Safra do camarão
Vendo que a lagoa secaria quase que por completo, o ICMBio antecipou a abertura da safra do camarão-rosa para o início de dezembro (o comum seria abrir em janeiro), na tentativa de ajudar os pescadores. No mês seguinte, os técnicos ainda fizeram uma raspagem no canal da barra para retirar areia e liberar a entrada de água do mar para a lagoa. Mas não havia vento Sul nem chuva suficiente para forçar o mar a ingressar na região. Como medida emergencial, o ICMBio encaminhará ao governo federal, na próxima semana, pedido de liberação de três cestas básicas para cada família de pescador. A ação já ocorreu no ano passado, durante a primeira seca do espelho de água.
— A safra de camarão-rosa dura cinco meses e a gente só pescou alguns dias. Então, calculamos uma perda de 90% da safra. De milhões de reais. Para piorar a situação, só alguns conseguiram pescar porque não havia lugar para todos. Estes dois anos consecutivos de estiagem foram um desastre para todas as famílias de pescadores — lamenta o presidente da Colônia de Pescadores Z11, que abrange os municípios de Mostardas e Tavares, Jair Joaquim Lucrécio, 61 anos, que nasceu na barra da Lagoa do Peixe.
Lucrécio relata que, na tentativa de continuarem trabalhando, alguns pescadores estão atuando na Lagoa dos Patos, mas com equipamentos não apropriados para a pesca em local profundo e sem a liberação para pescarem naquela área.
O Parque Nacional da Lagoa do Peixe é uma unidade de conservação ambiental que é conhecida também como um santuário de aves migratórias. Elas passam pela região para descansar e se alimentar entre os meses de setembro e março. No dia em que a reportagem de GZH esteve no local, havia garças, colhereiros e maçaricos sobrevoando a área ainda úmida. Sob um sol de 33°C, um quero-quero, na tentativa de saciar a sede, buscava em vão algum líquido num dos canos do concreto que fazem a ligação entre um lado da lagoa e o outro.