O canal que liga o mar à Lagoa do Peixe, localizada dentro do parque nacional de mesmo nome, em Tavares, no Litoral Médio, a 220km de Porto Alegre, voltou a ser aberto de forma artificial na terça-feira (2). A iniciativa ocorre mesmo com um alerta de previsão de redução nas chuvas na região nos próximos meses – o que poderia causar nova seca na lâmina d'água. A decisão foi unânime no Grupo de Trabalho de Manejo da Barra que reúne, em parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), representantes dos pescadores, das prefeituras de Tavares e Mostardas, dos proprietários de terra.
Segundo o gerente regional Sul (GR5 Sul) do ICMBio, Isaac Simão Neto, antes da decisão, os representantes tiveram expostas as questões técnicas que poderiam impedir a abertura do canal, neste momento, como a presença do La Niña até o início de 2023 - que causará temperaturas mais altas e chuvas abaixo da média no Estado nos próximos meses - e o déficit hídrico na região.
— Quando não se tem algo tecnicamente muito bem fundamentado e quando se está lidando com uma previsão de tempo, da natureza e de comportamento de maré, se lida com possibilidades e não com certezas técnicas. Então, é importante que, além do caráter técnico, se tenha também o conhecimento da população local e tradicional que, pela experiência, podem opinar. E foi o que fizemos neste momento. O importante neste processo é que, além de opinarem junto à gestão da unidade, eles também sentissem o peso da responsabilidade pela decisão tomada — justifica Neto.
Também ouvidos por GZH, o vice-prefeito de Tavares, Gilmar Ferreira De Lemos, o Pretinho, e o secretário de Meio Ambiente de Mostardas, Augusto Garcia, informaram que as administrações municipais seguem o que é acordado pelo grupo de trabalho e fornecem o maquinário necessário para a abertura do canal.
— A lagoa estava como no inverno passado, cheia e bem diferente do cenário do verão. A abertura não foi o principal fator para a lagoa secar. A barra é aberta há muitos anos. Foi uma questão de La Niña muito severa, somada à evapotranspiração da lagoa. Não está bem confirmado a La Niña, porque aqui para nós já vem perdendo intensidade e, a princípio, é só até dezembro. Nossa lagoa já estava cheia, e os meses que mais chovem na nossa cidade são agosto e setembro. Então ela vai se manter no nível mesmo com a barra aberta — argumentou Garcia.
— Não é a prefeitura quem decide abrir ou fechar a barra (canal). A gente participa das reuniões para se inteirar do assunto, e a prefeitura é parceira para abri-la. Mas a decisão sempre parte dos pescadores, do ICMBio e dos proprietários de terras. Desta vez, usamos uma máquina de Mostardas e uma de Tavares — explica Lemos.
Presidente da Colônia de Pescadores Z11, que abrange os municípios de Mostardas e Tavares, Jair Joaquim Lucrécio, 61 anos, nasceu na Barra da Lagoa e se criou pescando na região. Ele explica que em outras décadas, o canal era aberto em maio porque chovia mais na região. Porém, nos anos mais recentes, começou a ter menos chuva.
— Para os pescadores, a larva do camarão começa a entrar na lagoa (se o canal estiver aberto) em junho e julho. Já estávamos atrasados porque a lagoa teve aquela seca muito forte e choveu pouco este ano. Então, tivemos que atrasar para abrir a barra. Com a barra aberta, até os passarinhos se alimentam melhor com o que vem do mar — justifica Lucrécio.
Seca assolou a região no início deste ano
Em fevereiro deste ano, a reportagem de GZH presenciou a transformação em deserto de cerca de 50% dos 35 quilômetros de extensão da Lagoa. Os três maiores dos oito setores disponíveis para pesca – Costa, Lagamarzinho e Paiva – viraram pó por mais de um mês, matando milhares de camarões, siris e peixes, incluindo espécies ameaçadas de extinção, como o burriquete. A água só voltou ao leito da lagoa em março, como também registrou GZH. A falta prolongada de chuva na região esteve entre os fatores que contribuíram para a seca. Mas outro fator pode ter influenciado diretamente no problema: a ação humana.
Segundo a doutora em Geociências Venisse Schossler, que é pesquisadora do Centro Polar e Climático, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e estuda a área há quase 15 anos, imagens de satélite comprovam que no inverno de 2021 a lagoa não encheu por completo, como costumava ocorrer nessa época do ano. Ainda assim, o canal foi aberto no final de agosto do ano passado. O problema, apontou Venisse, é que o Rio Grande do Sul já estava sob efeito do fenômeno La Niña com oscilação antártica (relacionada a mudanças na posição da corrente de jato, sistemas frontais, ciclones e anticiclones) positiva há quase dois anos. Esta combinação aumentou as chances de bloqueio atmosférico, impossibilitando o avanço de frentes frias e impedindo a chegada das chuvas prolongadas.
— No ano passado, a chuva ocorreu de forma concentrada, com vários dias subsequentes sem chuva. Não foi suficiente para recuperar o solo e para encher a lagoa, como em outros anos. Isso já é consequência das mudanças climáticas. E o problema é que o cenário do inverno deste ano na região foi o mesmo de 2021 — aponta Venisse.
Neste ano, a doutora em Geociências chegou a ser procurada por representantes do ICMBio mais de uma vez e contribuiu com levantamentos que apontavam a previsão de uma terceira La Niña consecutiva até o final deste ano.
— O problema não é ter a lâmina de água normal na lagoa, mas saber como está o lençol freático embaixo da lagoa. Se está seco, no momento em que parar de chover, ou tiver estiagem, vai secar porque ela é muito rasa. Tendo um segundo ano consecutivo de La Niña já é ruim. Imagine um terceiro ano. É pior ainda porque o déficit hídrico não foi recuperado — explica.
"Eles estão se precipitando", diz doutora em Geociências
Conforme Venisse, a região até poderá ter uma precipitação na média nos próximos meses porque há influência da oscilação antártica (relacionada a mudanças na posição da corrente de jato, sistemas frontais, ciclones e anticiclones) negativa, o que induziria a entrada de frentes frias. Ainda assim, falta água na lagoa. De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o déficit hídrico na região de janeiro de 2021 até agora é de 1.342mm. De acordo com Venisse, a chuva acumulada no trimestre maio/junho/julho deste ano foi de 273mm, praticamente a mesma comparando ao mesmo trimestre no ano passado, quando choveu 276mm no período.
— Eles estão se precipitando pois, no momento, a lagoa parece estar com uma lâmina d'água normalizada. Porém, no ano passado, na mesma época, abriram a lagoa pelo mesmo motivo, e estavam equivocados. As imagens de satélite de julho do ano passado e de agora mostram a mesma circunstância. E os dados de precipitação e déficit hídrico do Inmet confirmam. Prudente seria esperar o volume total de chuvas até o final do inverno para então decidir. O problema pode se agravar no verão, onde a evapotranspiração aumenta e os ventos podem colaborar para seu assoreamento — alerta Venisse.
A Lagoa do Peixe que, na verdade, é uma laguna por ter ligação com o mar, tem um canal cuja abertura para o oceano não costuma ocorrer de forma natural. Nesta condição, ele só abre se há um excedente de chuva ou quando ocorre algum tipo de maré de tempestade, com as ondas batendo, lavando a praia, tirando sedimentos e fazendo subir a maré em conjunto com a pressão de dentro do corpo d'água, que empurra a água para fora porque a lagoa está muito cheia.
Uma vez por ano, nos meses de inverno, máquinas das prefeituras de Tavares e de Mostardas, com o aval do ICMBio, abrem a barra da Lagoa do Peixe para a saída de água doce, evitando inundação de campos de gados localizados à margem da lagoa e da estrada do Talhamar, que faz ligação entre a BR-101 e a Praia do Farol. A abertura também permite a entrada de água salgada, a troca nutrientes e o favorecimento da vida marinha dentro da lagoa – ajudando na proliferação de camarões, siris e peixes, que são recolhidos pelos 201 pescadores cadastrados para atuarem na lagoa. Desde a seca do início deste ano, os pescadores da região estão sem atuar no local. Eles receberam cestas básicas do governo federal.
O Parque
Criado em 1986, o Parque Nacional da Lagoa do Peixe é uma unidade de conservação ambiental com 344 quilômetros quadrados. Só a Lagoa do Peixe tem dois quilômetros de largura média. Sua profundidade média é de 60 centímetros, com exceção da área do canal, onde pode chegar a dois metros. A área é considerada por pesquisadores de diferentes áreas e de todo o mundo como uma "joia rara da avifauna planetária", pois serve como ponto fundamental de passagem de aves migratórias vindas da América do Norte e da Europa.
Na Lagoa do Peixe, entre novembro e março, as aves migratórias se alimentam e descansam antes de seguirem viagem. O parque também é uma área de proteção das amostras dos ecossistemas litorâneos no Rio Grande do Sul. Pelo local, passam animais ameaçados de extinção, como o peixe burriquete e as aves sanã-cinza, gavião-cinza, trinta-réis-real e gaivota-de-rabo-preto.