A seca que atinge a Lagoa do Peixe, localizada no parque nacional de mesmo nome, entre os municípios de Tavares e Mostardas, no Litoral Médio do Estado, foi influenciada por um conjunto de fatores climáticos, mas uma ação humana em momento errado pode ter contribuído para a situação. O apontamento é feito por Venisse Schossler, doutora em Geociências e pesquisadora do Centro Polar e Climático, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Estudando a área há quase 15 anos, ela analisou imagens de satélite do ano passado e percebeu que a lagoa não encheu por completo no inverno de 2021, como costuma ocorrer naquela época do ano. Ainda assim, o canal da barra da lagoa foi aberto em agosto com a ajuda de maquinário das prefeituras de Tavares e Mostardas, com o aval do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Uma vez por ano, nos meses de inverno, máquinas abrem a barra da lagoa para a saída de água doce, evitando inundação de lavouras da região, e entrada de água salgada, trocando nutrientes e favorecendo a proliferação de camarões e peixes.
O problema, aponta Venisse, é que há quase dois anos o Rio Grande do Sul está sob efeito do fenômeno La Niña com oscilação antártica (relacionada a mudanças na posição da corrente de jato, sistemas frontais, ciclones e anticiclones) positiva. Esta combinação aumenta as chances de bloqueio atmosférico, impossibilitando o avanço de frentes frias e impedindo a chegada das chuvas prolongadas.
— A única região onde não teve déficit hídrico no Estado no ano passado foi na Lagoa do Peixe. Porém, a chuva ocorreu de forma concentrada, com vários dias subsequentes sem chuva. Não foi suficiente para recuperar o solo e para encher a lagoa, como em outros anos. Isso já é consequência das mudanças climáticas. Além da evapotranspiração, causada pelo vento, pelo calor e pelo volume de chuva, ter aberto o canal para escoar o que ainda havia de água na lagoa pode ter influenciado diretamente no que estamos vendo agora: a seca. O canal só deveria ser aberto com maquinário com estudo aprofundado sobre o volume de água, com a certeza de que existe excedente pra manter a lagoa cheia em caso de estiagem. E não foi o caso. Se precipitaram. Contaram que ia chover o suficiente para manter o nível d'água e não choveu — sustenta Schossler.
A lagoa que, na verdade, é uma laguna por ter ligação com o oceano Atlântico, tem um canal cuja abertura para o mar não ocorre facilmente de forma natural. Ele só abre naturalmente, explica a geógrafa, se há um excedente de chuva ou quando ocorre algum tipo de maré de tempestade, com as ondas batendo, lavando a praia, tirando sedimentos e fazendo subir a maré em conjunto com a pressão de dentro do corpo d'água, que empurra a água para fora porque a lagoa está muito cheia.
Hoje, pelo menos 50% dos 35 quilômetros de extensão da Lagoa do Peixe estão sem água. Nesta semana, o ICMBio montou um grupo de trabalho para discutir alternativas que amenizem estiagens futuras e também manter a biodiversidade da região. Porém, o gestor do parque, Fabiano José de Souza, ressaltou à reportagem de GZH na quinta-feira (3) que será necessário um estudo de viabilidade técnica antes de qualquer ação ser executada, já que se trata de uma área de preservação ambiental. Para a situação começar a voltar ao normal, acredita Fabiano, será preciso chover 200 milímetros em um curto espaço de tempo e ventar do Sul por quatro dias para ajudar a subir o mar. Só assim, ele conseguirá transpor a barra de areia que o separa da lagoa.
Criado em 1986, o Parque Nacional da Lagoa do Peixe é uma unidade de conservação ambiental com 344 quilômetros quadrados. Só a Lagoa do Peixe tem dois quilômetros de largura média. Sua profundidade média é de 60 centímetros, com exceção da área do canal, onde pode chegar a dois metros. A área é considerada por pesquisadores de diferentes áreas e de todo o mundo como uma "joia rara da avifauna planetária", pois serve como ponto fundamental de passagem de aves migratórias vindas da América do Norte e da Europa. Na Lagoa do Peixe, entre novembro e março, as aves migratórias se alimentam e descansam antes de seguirem viagem. O Parque também é uma área de proteção das amostras dos ecossistemas litorâneos no Rio Grande do Sul. Pelo local, passam animais ameaçados de extinção, como o peixe burriquete e as aves sanã-cinza, gavião-cinza, trinta-réis-real e gaivota-de-rabo-preto.
"É preciso proteger o leito da lagoa, mesmo seca"
Doutor em Ecologia, o biólogo Jackson Müller estuda a lagoa e costuma visitá-la várias vezes ao ano para pesquisas. Ele considera a seca atual da Lagoa do Peixe um desastre ambiental.
— Estamos destruindo as belezas das nossas terras, com passividade. Por que só agora estão alertando para a seca? Ela não secou do dia para a noite. Onde estão as aves que dependem daquela região para se alimentar?
A lagoa é abastecida pela chuva, mas também recebe água dos banhados, de lagoas do entorno e do fluxo das marés. Durante o doutorado, Müller fez um estudo sobre a Lagoa do Peixe, analisou a área de 1985 a 2005. O levantamento apontou que a área alagada reduziu 50% no período por conta da erosão eólica - a areia transportada pelo vento e que teve o fluxo modificado por conta da silvicultura no entorno da lagoa.
— Os plantios silviculturais mudaram o regime de ventos e de transporte da areia. Podem ter direcionado mais areia para dentro da estrutura da lagoa do que naturalmente iria por conta das dunas - explica o biólogo.
Müller ainda alerta que no lodo restante no fundo da lagoa ficaram larvas e ovos que quando a água voltar deverão eclodir.
— Não pode deixar veículos ficarem transitando nos banhados e dentro do leito da lagoa para tirarem fotos turísticas de uma desgraça que está ocorrendo ali, ampliando os impactos negativos naquele lugar. Agora, é preciso proteger o leito da lagoa — afirma Müller.