Aos poucos, a vida está voltando à Lagoa do Peixe, entre Tavares e Mostardas, no Litoral Médio, a 220 quilômetros de Porto Alegre. Depois de uma seca que tornou deserto mais de 50% da lagoa, entre janeiro e março deste ano, a lâmina de água já cobre os 35 quilômetros de extensão da área que é fonte de sustento para 201 pescadores.
E se, lá em fevereiro, as únicas presenças no ambiente eram a terra rachada, a poeira sendo erguida pelo vento Nordeste e o cheiro de putrefação a quilômetros de distância, em meio a mais de 2 toneladas perdidas de peixe, agora o cenário é outro: com a volta das chuvas no inverno e a regeneração do ecossistema, as primeiras aves migratórias começam a se aproximar do santuário para se recuperar antes de seguir viagem rumo ao Sul e os primeiros peixe-reis já estão sendo pescados. Há muito a recuperar, dizem os pescadores locais. Mas a sensação de perda começa a ficar no passado da unidade de conservação ambiental Parque Nacional da Lagoa do Peixe.
Ainda assim, os olhos do Grupo de Trabalho de Manejo da Barra (GTMB), que reúne, em parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), representantes dos pescadores, das prefeituras de Tavares e Mostardas e dos proprietários de terra, estão atentos aos próximos meses. Afinal, o fenômeno La Niña seguirá atuando sobre o Estado até 2023. Segundo os meteorologistas, o total de chuva esperado na região da lagoa para os três meses da primavera é de 371 milímetros, mas os prognósticos indicam chuvas abaixo dessa média, com chance de acerto de 60%. Se isso se confirmar e se houver vento Nordeste soprando por muitos dias, poderá ocorrer algo inédito na região: o segundo ano consecutivo de seca no verão.
No início de agosto, quando a água da lagoa voltou a passar sobre a Estrada do Talhamar, a principal via que corta o parque, o GTMB, criado com o objetivo de discutir as questões relacionadas à lagoa, tomou a decisão de abrir de forma artificial o canal que liga o mar à Lagoa do Peixe. Na época, em entrevista a GZH, o gerente regional Sul (GR5 Sul) do ICMBio, Isaac Simão Neto, explicou que, antes da decisão, os representantes ouviram a opinião dos moradores locais e tiveram expostas as questões técnicas que poderiam impedir a abertura do canal, como o déficit hídrico da região e a presença do La Niña – que causará temperaturas mais altas e chuvas abaixo da média no Estado nos próximos meses.
A doutora em Geociências Venisse Schossler, que é pesquisadora do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e estuda a área há quase 15 anos, alertou que a abertura estaria sendo precipitada, pois ainda faltava água suficiente na lagoa. Conforme o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o déficit hídrico de janeiro de 2021 até o início de agosto foi de 1.342 milímetros. De acordo com Venisse, a chuva acumulada no trimestre maio-junho-julho deste ano foi de 273 milímetros, número muito aproximado do mesmo trimestre do ano passado, quando choveu 276 milímetros no período. Venisse chegou a sugerir que o prudente seria esperar o final do inverno para decidir, pois há o alerta de o problema se agravar no próximo verão, época em que a evapotranspiração aumenta e os ventos ajudam no assoreamento.
A Lagoa do Peixe é na verdade uma laguna, porque tem ligação com o Oceano Atlântico. No seu lado Sul, apresenta o canal que é aberto anualmente de forma artificial no período do inverno. Ele até se abre de forma natural, mas isso só ocorre raramente: quando há um excedente de chuva ou ocorre algum tipo de “maré de tempestade”, com as ondas batendo, lavando a praia e tirando sedimentos.
— O volume de água está sendo monitorado via Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden, órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação). No momento, a lagoa está cheia. A previsão do La Niña se confirma na Região Sul, com chuvas abaixo da média. Ainda há a discussão se devemos fechar a barra (o canal aberto para o mar) caso a lagoa comece a secar, mas é preciso lembrar que a principal causa da perda de água na estiagem é a evaporação, e não o escoamento d’água — explica Simão Neto.
O responsável do ICMBio reforça que, em outubro, deve ocorrer uma nova reunião do grupo para seguir discutindo a questão. Ele revela que o órgão também consultou o Ibama e aguarda uma posição sobre a barra ser uma atividade “passível de licenciamento” ou se não é necessária autorização oficial. A resposta ainda não foi divulgada.
120 dias de vento
O presidente da Colônia de Pescadores Z11, Jair Joaquim Lucrécio, afirma que a abertura do canal foi importante para a sobrevivência de quem é autorizado a pescar na lagoa. Como as espécies existentes – camarões, siris e peixes – morreram em consequência da estiagem, os pescadores ficaram sem trabalho. Cada um deles recebeu três cestas básicas do governo federal enquanto a lagoa se recuperava. Os pescadores foram autorizados pelo governo federal a seguirem atuando na Lagoa dos Patos. Porém, como a maioria não possui equipamentos apropriados para a área, apenas Jair e outros poucos se arriscaram a pescar no local. A maioria trabalha a remo, sem motor e com embarcação pequena, porque a lagoa é rasa – não passa dos 60 centímetros de profundidade, enquanto a Lagoa dos Patos tem mais de dois metros em determinados pontos.
— Isso aqui tinha virado um banhado morto — define o presidente da Z11, sobre a lagoa no período da estiagem. – Mas tudo mudou a partir da abertura da barra. Entraram linguados, peixes-rei e camarões. Voltamos a trabalhar na lagoa no final de agosto. Os peixes voltaram, os pescadores voltaram e os passarinhos voltaram. Há vida de novo por aqui.
Todos os finais de tarde, quando não há previsão de temporal ou vendaval, os pescadores instalam as redes de pesca na lagoa e as retiram no início da manhã do dia seguinte. Jair revela que tem sido possível tirar até 200 quilos de peixe-rei diariamente. Ele integra a segunda geração de uma família que morou até 2012 próximo ao canal da Barra da Lagoa, mas precisou sair do local com a transformação da região em parque nacional. A convite de GZH, voltou à área onde, ao lado da esposa, criou os três filhos – dois deles hoje trabalham com a pesca.
— O pescador daqui sabe a importância de preservar esta região, porque o nosso sustento depende dela. O que a gente mais quer é seguir vendo a lagoa cheia e protegida, do esgoto, do lixo e da ação dos seres humanos — desabafa Jair.
Há 61 anos vivendo no entorno da lagoa, ele garante não ter visto dois anos seguidos de seca no local – situação que pode mudar devido às mudanças climáticas atuais.
O final do ano passado e o início deste ano foram uma catástrofe."
JAIR JOAQUIM LUCRÉCIO
presidente da Colônia de Pescadores Z11
— O final do ano passado e o início deste ano foram uma catástrofe. O vento Nordeste ficou presente uns 120 dias, ajudando a secar a lagoa. A barra aberta mais ao Sul não conseguiu colocar água para dentro porque o vento não deixava. Se tiver seca de novo vai ser um azar muito grande.
Joia rara da avifauna
Em meio às discussões sobre abertura e fechamento do canal, houve uma troca importante na gestão do Parque Nacional da Lagoa do Peixe. O biólogo e ex-pescador da lagoa Fabiano José de Souza deixou o cargo e, em 30 de agosto, Riti Soares dos Santos, morador local e que há 15 anos está no órgão, assumiu em seu lugar. Antes, ele fora gestor ambiental do ICMBio e chefe de Brigada do Parque.
A reportagem esteve na Lagoa do Peixe entre 21 e 23 de setembro. No primeiro dia, voltou a uma das áreas mais impactadas pela seca do início do ano, o setor Lagamarzinho/Paiva. No local, onde em fevereiro as redes de camarão pairavam sobre uma terra seca, agora foi possível ver a água indo até a margem e as pegadas de aves em busca de alimento.
No segundo dia, choveu mais de 50 milímetros em 24 horas, mas as rajadas de vento Sudeste de quase cem quilômetros por hora ajudaram a secar um trecho de cem metros no final no setor da Trilha da Figueira, na tarde do dia 22. Os pássaros se esforçavam para se alimentar. Toda a água daquele ponto foi praticamente carregada para o outro lado da lagoa, até a Estrada do Talhamar, chegando a avançar sobre a via em alguns pontos.
No dia 23 de setembro, o vento ainda era de 50 quilômetros por hora, e a sensação térmica chegou a 3°C pela manhã. Com isso, nenhum pescador arriscou-se a jogar rede na lagoa.
No total, o Parque Nacional da Lagoa do Peixe tem 344 quilômetros quadrados. Trata-se de uma unidade de conservação ambiental, assim designada em 1986. Só a lagoa tem dois quilômetros de largura, em média. Sua profundidade média é de 60 centímetros, com exceção da área do canal, onde pode chegar a dois metros. O parque também é uma área de proteção das amostras dos ecossistemas litorâneos no Rio Grande do Sul. Pelo local, passam animais ameaçados de extinção, como o peixe burriquete e as aves sanã-cinza, gavião-cinza, trinta-réis-real e gaivota-de-rabo preto. A área é considerada por pesquisadores de todo o mundo, e de diferentes áreas, como uma “joia rara da avifauna planetária”, pois serve como ponto fundamental de passagem de aves migratórias vindas da América do Norte e da Europa. No local, entre novembro e março, as aves migratórias se alimentam e descansam antes de seguir viagem.
Em 2012, o parque aderiu ao Programa Nacional de Monitoramento da Biodiversidade. O objetivo é monitorar a abundância e a variação das espécies dentro e na região adjacente do parque nacional, em diferentes meses do ano. O monitoramento ocorre de forma mensal entre novembro e agosto, e semanalmente nos períodos de chegada e partida das aves migratórias, em setembro e outubro, abril e maio.
Conforme dois dos responsáveis pelo monitoramento, os biólogos Marcelo Alves e Leonice Homem, que são bolsistas do projeto Áreas Marinhas e Costeiras Protegidas (GEF Mar) do Ministério do Meio Ambiente, mais de 40 espécies migratórias, vindas tanto do Hemisfério Norte quanto do Sul, passam pela Lagoa do Peixe. As mais comuns são maçarico-depeito-vermelho (Calidris canutus), maçarico-de-sobre-branco (Calidis fuscicollis), maçaricobranco (Calidris alba), vira-pedras (Arenaria interpres), maçaricoacanelado (Calidris subruficollis), trinta-réis-de-bico-vermelho (Sterna hirundinacea), batuiruçuaxila-preta (Pluvialis squatarola) e flamingo-chileno (Phoenicopterus chilensis), entre outras.
Recentemente, foi iniciada uma pesquisa com a espécie piru-piru (Haematopus palliatus). O estudo é realizado em parceria com a UFRGS e o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave) e tem o objetivo de caracterizar os padrões de ocorrência e atividade reprodutiva dentro da unidade. Os biólogos ressaltam que o piru-piru é uma ave limícola, residente e considerada uma espécie guarda-chuva. Ou seja, bioindicadora ambiental. Por meio do monitoramento dela é possível analisar a qualidade do ambiente e apoiar ações da gestão do parque para intervir em danos tanto desta quanto das demais espécies.
As aves migratórias são o principal atrativo do Parque Nacional da Lagoa do Peixe e têm até evento próprio. O próximo, o 15º Festival das Aves Migratórias, ocorrerá entre 24 e 27 de novembro, em Tavares. Admiradores dos pássaros e apaixonados pela natureza de todas as partes do mundo costumam visitar a cidade cuja população estimada é de 5,4 mil habitantes.
Empresário e turismólogo, João Batista Cardoso foi um dos primeiros a incentivar o ecoturismo em Tavares. Há 18 anos, ele recebe turistas para conhecer a lagoa. Vários são de outros Estados e até de fora do Brasil. Se são grandes grupos, João Batista solicita autorização ao ICMBio para circular pelo parque.
— Quando a lagoa secou no verão, muitos turistas cancelaram a vinda. E isso prejudicou a economia. O parque é um atrativo para as aves e os visitantes. Mas o mais importante é que povo local tem um carinho e um zelo pela Lagoa do Peixe — diz.