A emergência climática pressiona cada vez mais os governos e as empresas a adotarem medidas que reduzam a emissão de poluentes, que segue subindo em nível global. A principal cobrança é pela substituição do uso de fontes fósseis por fontes limpas – que geram menos gases de efeito estufa – para a produção de energia. A boa notícia é que o Brasil tem sido destaque na transição energética, com índices muito superiores à média mundial. Há, no entanto, desafios pela frente: o percentual de uso de fontes não renováveis e poluentes ainda é maioria na geração, por exemplo, de combustível para veículos e de gás de cozinha.
O conceito de energia limpa exclui fontes que, apesar de renováveis, sejam poluentes, como o biogás e o biodiesel, e foca naquelas com baixa emissão de gases de efeito estufa, como a eólica, a solar e a hídrica. Se essa aposta tem ampliado o número de pesquisas e descobertas no setor, multiplicam-se, também, demandas como a diversificação dos recursos, a autonomia energética e muito investimento financeiro.
Quando se fala em energia limpa ou renovável, dois índices são levados em consideração: o percentual de matriz elétrica, que indica as fontes utilizadas para produzir eletricidade, e o de matriz energética, mais amplo, que abrange também os recursos disponíveis para movimentar carros e preparar comida no fogão, por exemplo.
Tanto em sua matriz elétrica como na energética, o Brasil é destaque no uso de fontes renováveis. Não há um levantamento específico do percentual de energia limpa produzida, mas o Balanço Energético Nacional de 2022 feito pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia, indicou que 82,9% das fontes de eletricidade no país são renováveis – o que inclui o gás natural, por exemplo, que não é considerado limpo – contra uma média global de 28,6%. A diferença da média brasileira para a mundial diminui quando se fala em matriz energética, mas ainda é significativa: passa para 48,4%, no Brasil, contra 15% no mundo.
No Rio Grande do Sul, em outubro de 2022, as energias renováveis representavam 82,2% da matriz elétrica instalada e 82,7% da produzida. Mais da metade da eletricidade (55,9%) vinha de hidrelétricas. O uso de energia eólica estava empatado com o de termo fóssil (não renovável), em 17,3%, seguido pela fotovoltaica (9,4%) e pela biomassa (0,1%).
Já os percentuais da matriz energética ainda não são sabidos – devem ser conhecidos em breve, com a publicação de um balanço ainda em construção, feito pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema).
A ordem entre os especialistas em energia limpa é clara: quanto mais se diversificar as fontes, melhor. E a diretriz está sendo seguida pelo governo do Estado, que tem aberto editais e investido em pesquisas que tenham esse objetivo. A Sema já investiu no mapeamento do potencial de produção e consumo das energias eólica, solar e da biomassa e está fazendo o mesmo tipo de inventário para as energias hídrica e do hidrogênio verde.
– Desde 2006, o Estado já tem uma instalação expressiva de fontes renováveis, com o Parque Eólico de Osório, e, hoje, trabalhamos no sentido de ter licenciamentos ambientais com taxas diferenciadas e mapeamentos com o potencial de produção e consumo. Com isso, temos um mapa de potencial acoplado ao olhar ambiental, que pode agregar mais ou menos restrições – relata a secretária do Meio Ambiente e Infraestrutura, Marjorie Kaufmann.
Segundo Marjorie, a abundância de recursos naturais existentes no Rio Grande do Sul, que conta com muita água, vento, sol e produção agropecuária, lhe permite ser destaque na diversidade energética:
– A vocação do Estado não é ser o melhor em uma fonte energética ou outra, mas ser bom em todas. Por isso, precisamos ter conhecimento sobre os potenciais e as restrições ambientais de cada região e investir fortemente nessa distribuição, até porque temos uma malha de distribuição que poucos Estados têm.
A secretária estadual de Inovação, Ciência e Tecnologia, Simone Stülp, acredita que o mais importante, atualmente, é que haja uma discussão em profundidade entre sociedade e Estado para se definir quais caminhos serão seguidos na área energética, a fim de estabelecer estratégias para alcançar o objetivo. Esse trajeto passa por investimentos em pesquisa e desenvolvimento e pela atração de empresas de pesquisa e tecnologia para a região.
– Se olhamos para a nossa vida, cada vez precisamos de uma maior quantidade de energia para as nossas atividades. É só ver quantos aparelhos estão ligados ao nosso redor. Por isso, é importante diversificarmos as fontes de energia. Hoje, temos fontes que dão conta, mas e amanhã? É uma questão complexa, e quanto mais complexo é o problema, mais complexa é a solução. Por isso, precisamos de processos participativos – analisa Simone.
Um dos desafios no Estado é alcançar a autonomia energética – hoje, o Rio Grande do Sul produz cerca de 70% da energia que consome, e precisa adquirir de outros Estados o restante. Com os empreendimentos com projetos aprovados e instalações previstas, essa autonomia pode ser alcançada daqui a cerca de três anos, conforme Guilherme Sari, presidente do Sindicato da Indústria de Energias Renováveis do Rio Grande do Sul (Sindienergia-RS).
– Vislumbramos esse momento de autossuficiência energética para 2026 ou 2027. Os projetos em energia demandam tempo. Primeiro, foi necessário fazer linhas de transmissão. Depois, viabilizar os projetos. Com o fim da isenção da Tust (Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão), em março de 2022, houve uma enxurrada de projetos até essa data que devem permitir, se não a autossuficiência, quase empatarmos na produção e no consumo de energia – relata Sari, acrescentando que mais projetos foram apresentados após essa data.
A energia democrática
Define-se como energia limpa aquela que possui uma baixa emissão de dióxido de carbono e metano, que são os principais gases de efeito estufa causadores de mudanças climáticas. Coordenador do curso de Engenharia de Energias Renováveis da PUCRS, Odilon Duarte observa que não existe energia totalmente limpa, uma vez que todas causam algum impacto no meio ambiente, mas que fontes geradoras de energia solar, eólica, hídrica, oceânica e nuclear, por exemplo, são exemplos que impactam menos.
– Nossa matriz energética é invejável: somos um dos países com maior percentual de matriz limpa. Quando falamos na matriz elétrica, então, damos um show. Com a possibilidade de as pessoas produzirem energia nas suas próprias casas, quase duplicamos o sistema de instalação fotovoltaica desde 2016, e o Brasil está num passo interessante também na eólica e no investimento em biomassa – comenta Duarte.
Se muito se fala em diversificação de fontes energéticas, a eliminação do uso de fontes fósseis de geração de energia não é esperada por especialistas. Segundo Duarte, para além do fator ambiental, a busca por alternativas à energia oriunda do petróleo envolve a própria soberania das nações.
– O petróleo é dominado por alguns países, que ditam a precificação do óleo. Já a energia limpa eu posso ter em qualquer país do mundo, o que é democrático e gera autonomia. Putin (presidente da Rússia), por exemplo, quando não gosta de alguma ação da Europa, fecha a torneira do gás. Com isso, a Alemanha está precisando estocar óleo diesel, reativar usinas de carvão. O combustível fóssil é uma ameaça até para a soberania dos países – pontua o coordenador.
No processo de transição energética, Aline Pan, que é doutora em Energia Solar Fotovoltaica e professora do curso de Engenharia de Gestão de Energia do Campus Litoral Norte da UFRGS, cita três palavras com D para resumir os objetivos: “descentralizar”, “diversificar” e “digitalizar”. Nelas, estão contidas as necessidades de não produzir energia em um só lugar do país, não usar um só recurso, seja ele renovável ou não, e criar sistemas de transmissão de energia inteligentes, que se comuniquem entre si.
– Na realidade mundial, o D principal é “descarbonizar”, mas, no Brasil, a matriz elétrica é mais de 80% renovável. Então, para nós, o principal é diversificar, para que não estejamos reféns de um único recurso e não aconteça o que aconteceu em 2021, por exemplo, quando os baixos níveis de reservatórios fizeram com que precisássemos ativar as termelétricas – analisa Aline.
A pauta da transição energética, que, neste ano, deve ganhar uma secretaria específica dentro do Ministério de Minas e Energia, envolve alguns impasses. Por exemplo: se, por um lado, o investimento em carros elétricos reduziria o uso de combustíveis fósseis, por outro, exigiria uma oferta muito maior de energia elétrica, que, hoje, o Brasil não estaria apto a garantir.
– Em 2021, só não tivemos apagão porque era um ano pandêmico, ainda com restrições. Se fizermos a transição do combustível para a eletricidade, de onde vamos tirar os recursos? Precisamos ter muito cuidado. Seria mais responsável fazer essa troca, primeiro, no transporte coletivo, em vez de subsidiar a venda de carros elétricos, e promover a digitalização – defende Aline.