Era 26 de junho de 2009, e Zero Hora noticiava como manchete de capa a morte de Michael Jackson, o astro pop que, no famoso hit Heal The World, cantava: “We want to make it a better place” (nós queremos fazer deste mundo um lugar melhor). Curiosamente, na mesma edição do jornal, a página 56 trazia outra notícia que ia de encontro ao que pregava Jackson. Pessoas que aparentemente não queriam fazer deste mundo um lugar melhor enviaram da Inglaterra para o Brasil, ilegalmente, 89 contêineres com 1,4 mil toneladas de lixo tóxico e químico. A história, que ganhou repercussão mundial, completa 10 anos ainda em aberto.
Após denúncia anônima, os detritos foram encontrados no Brasil pela Receita Federal em junho de 2009, mas a importação começara algum tempo antes, entre fevereiro e maio daquele ano. Os contêineres, que partiram de Felixstowe, na Inglaterra, e passaram pelo porto da Antuérpia, na Bélgica, foram distribuídos nos portos de Santos e de Rio Grande e em uma estação alfandegária de Caxias do Sul.
A documentação da carga indicava que ali dentro estavam polímeros de etileno, que nada mais são do que aparas de plástico para reciclagem. Porém, quando a Receita Federal abriu as portas das caixas de metal no Terminal de Contêiner de Rio Grande (Tecon), algo literalmente não cheirava bem. Elas estavam cheias de rejeito urbano altamente tóxico e nocivo, como lixo hospitalar, resíduos de banheiros químicos, baterias, preservativos e seringas usadas, remédios fora do prazo de validade e fraldas sujas.
Além de toda podridão, um dos contêineres trazia bonecas com bilhetes escritos em português que intrigavam quem acompanhava os trabalhos: “Por favor, entreguem estes brinquedos para as crianças pobres do Brasil. Lavar antes de usar”. Apesar da grande revolta que as toneladas de lixo causavam, foi a mensagem, que segue até hoje sem explicação, o que mais incomodou na época o jornalista Diniz Júnior. Mais tarde, ele escreveu um livro sobre o caso, Toma que o Lixo É Teu (editora Portos & Mercados).
– Aquilo foi uma porrada – afirma Diniz. – As bonecas enviadas não tinham cabeças, braços nem pernas. Não foi a minhoca, que também veio no lixo, que me causou tamanha indignação. Foram os bilhetes. As nossas crianças merecem respeito.
As investigações da Polícia Federal concluíram que as empresas de reciclagem na Inglaterra gastam mais dinheiro descartando o lixo de forma correta dentro do próprio país do que enviando estes materiais para outras partes do mundo. Por isso, elas vendiam materiais de qualidade com preços muito interessantes para empresas recicladoras de outras nações, mas de contrapeso enviavam junto todo tipo de rejeitos.
Para comprar os materiais de reciclagem com preços muito atrativos, as empresas brasileiras assumiram o risco e aceitaram receber os detritos de forma ilegal. A prática contraria a Convenção de Basileia, que é um acordo internacional sancionado por mais de 50 nações, entre elas a Inglaterra, e ratificado no Brasil em 1993, pelo então presidente Itamar Franco. Entre outras diretrizes, a Convenção diz que a compra de todo tipo de produto é permitida, desde que ambos envolvidos estejam de acordo e, no caso específico, o Brasil não aprovou a transação.
Na época, cinco importadoras foram multadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Cada uma deveria pagar R$ 408 mil por danos ambientais, mas segundo a advogada de algumas destas empresas, Silvana Werner, as punições ainda não foram pagas e “estão até hoje sendo discutidas”. A Justiça não autoriza a divulgação dos nomes dos réus.
A situação na Justiça
Sob olhares do então ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, o lixo começou a ser devolvido no dia 4 de agosto de 2009. A carga foi encaminhada ao porto britânico de Felixstowe, de onde tinha vindo, e foi carregada pelo navio MSC Oriane, de bandeira panamenha, o mesmo que havia trazido os rejeitos.
– É mais barato botar os detritos em um navio e enterrar em outros locais – diz Minc, hoje deputado estadual pelo PSB do Rio de Janeiro.
Os últimos contêineres com o lixo inglês que restavam em solo gaúcho deixaram o porto de Rio Grande às 2h20min de uma terça-feira em 13 de setembro de 2009, a bordo do navio MSC Serena rumo à Inglaterra.
Todo o processo de envio do lixo de volta para o Reino Unido foi custeado pelas empresas inglesas Worldwide Biorecyclables Ltda e Edwards Waste Paper, pois, segundo o Artigo 9º da Convenção de Basileia, o retorno da carga ilícita ao país de origem é de responsabilidade do exportador.
Em junho de 2009, a Agência Britânica de Crimes Ambientais prometeu que não permitiria que o lixo inglês fosse jogado em países em desenvolvimento e que agiria com firmeza para punir os culpados. Três anos mais tarde, a entidade inglesa cumpriu a promessa. Em 12 de abril de 2012, diante de um alto tribunal de Old Bailey, a empresa londrina Edwards Waste Paper declarou-se culpada de ter exportado os rejeitos, o que vai contra a legislação da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
No Brasil, a Polícia Federal instaurou um inquérito que resultou no indiciamento de 12 pessoas, vinculadas a sete empresas, duas localizadas na Inglaterra e as demais localizadas aqui no país. Os indiciamentos ocorreram por crimes ambientais, associação criminosa e falsidade ideológica, de acordo com cada conduta individual praticada.
Um dos réus foi absolvido e os outros dois, condenados a um ano e nove meses de reclusão, pela prática do delito tipificado no art. 56 da Lei nº 9.605/98, que diz respeito ao transporte e armazenagem de substâncias nocivas a saúde humana. Sendo réus primários com pena inferior a dois anos, a pena privativa de liberdade foi substituída por prestação de serviços à comunidade.
Houve diversos recursos e apelações perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), todos negados. Neste momento, a execução das penas está suspensa até que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) julgue o agravo da decisão que recusou a admissibilidade do Recurso Extraordinário interposto pelos réus. Ainda não houve o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Incidente diplomático
Em 2009, a repercussão do caso cruzou o mundo. O jornal inglês The Guardian mancheteou: “Lixo perigoso britânico foi deixado para apodrecer nos portos brasileiros”.
O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que o Brasil não iria aceitar receber contêineres com lixo:
– Só temos uma saída, que é devolver os contêineres para o país de onde eles vieram porque nós queremos importar outras coisas, não lixo.
Houve um momento conturbado na diplomacia entre os países. O Itamaraty denunciou a Inglaterra ao Secretariado da Convenção da Basileia por tráfico de resíduos perigosos. O então chanceler Celso Amorim telefonou para seu equivalente britânico, David Miliband. Queria frisar que cabia ao país de origem da carga ilícita se responsabilizar pelo retorno dela.
Para a delegada da Polícia Federal Janaina Agostini Braido, que é, e era também em 2009, chefe do Núcleo Especial de Polícia Marítima (Nepom) e Coordenadora da Comissão Estadual de Segurança Pública nos Portos, Terminais e Vias Navegáveis do Estado (Cesportos), a crise fomentada na imprensa não foi adiante porque não havia motivo para isso.
– A ideia que se passou na época de que a Inglaterra estava se livrando de lixão para o terceiro mundo, como se fazia na África, era balela. Na verdade, foram empresas que iriam mandar produtos para serem reciclados e não fizeram a devida limpeza nos materiais e acabaram enviando um monte de porcaria junto – explica.
Mudança na legislação
Segundo o auditor fiscal chefe da seção aduaneira da Alfândega da Receita Federal no Porto de Rio Grande, Marco Antônio Medeiros, o caso de 2009 gerou um amplo debate nacional. Medeiros afirma:
– Se antes existiam dúvidas de como proceder nesse tipo de situação, hoje está tudo muito mais claro. Agora temos a Lei 12.715 de 2012, que determina a devolução ao Exterior de mercadoria estrangeira cuja importação não seja autorizada por órgão anuente com fundamento na legislação relativa à saúde, metrologia, segurança pública, proteção ao meio ambiente, controles sanitários, fito e zoossanitários. Também esta legislação indica quem é o responsável pela devolução ao Exterior e impõe multas pesadas a quem importar.
Após o caso inglês, o Brasil teve outros três episódios antes da aprovação da Lei 12.715. Em 2010, também no Porto do Rio Grande, houve a importação de 22 toneladas de lixo proveniente da Alemanha. Em 2011, 20 toneladas de lixo hospitalar da Espanha foram parar no porto de Itajaí, em Santa Catarina, e e outras 46, dos EUA, na pernambucana Suape.
– Acredito que houve uma tentativa de tornar o Brasil uma nova rota desse comércio ilegal e danoso, porém, as operações se concentraram de 2009 a 2011. Se antes a ausência de uma legislação mais específica tornava muito baixo o risco para quem pretendia cometer tais ilícitos, hoje há um grande risco – comenta Medeiros.