Historicamente, a economia de Rio Grande navega em águas tão conturbadas quanto as que estrondam nos molhes que levam ao seu porto. Desde o final do século 19, quando foi aberta a primeira fábrica de tecidos de lã do Brasil e o município se tornou um dos mais importantes polos têxteis do país, até anos recentes, com a promessa de fartura em razão do Polo Naval, a cidade se acostumou a viver entre saltos e tombos.
A indústria têxtil foi golpeada na década de 1960, com o declínio da célebre Fábrica Rheingantz. Mais recentemente, a paralisação da construção de plataformas deixou o Polo Naval à deriva, causando desemprego e quebradeira. Os banhos de água fria ligaram um alerta no município na Metade Sul do Estado: é hora de aproveitar a principal riqueza rio-grandina, o mar, para buscar o desenvolvimento sem depender de boa vontade vinda de fora.
Com essa crença, um movimento organizado por empresários, poder público e academia tem buscado formas de desbravar o oceano de forma sustentável para trazer mais inovação e tecnologia à cidade, colocando-a na sonhada trilha do desenvolvimento. Boa parte dessas iniciativas são encontradas dentro da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), onde se pretende transformar a pesquisa realizada em cursos como Oceanologia ou Engenharia de Alimentos em produtos inovadores.
— Rio Grande tem um enorme potencial para gerar inovação a partir dos recursos do mar, e estamos construindo uma estrutura que possibilite esse tipo de criação — afirma Artur Gibbon, gestor do Parque Científico e Tecnológico da Furg (Oceantec) e vice-presidente da Rede Gaúcha de Ambientes de Inovação (Reginp).
“QG” das startups que têm nascido desse movimento, o Oceantec ainda dá seus primeiros passos. Em operação há pouco mais de um ano, recebe empreendedores em processos de pré-incubação, incubação ou instalação permanente, no caso das empresas maiores. Atualmente, são cinco organizações instaladas, quatro incubadas e 10 em estágio de pré-incubação.
Na incubadora Innovatio, que ocupa uma ala do parque, mentores com experiência no mundo dos negócios ajudam professores e recém-formados a transformar suas ideias em produtos. Alguns projetos já entram no radar de investidores e potenciais clientes. É o caso da startup da engenheira de alimentos Vilásia Guimarães Martins, professora e pesquisadora na Furg.
Ao lado de dois alunos do doutorado e um do mestrado, ela lançou um projeto para transformar as pesquisas realizadas no Laboratório de Tecnologia de Alimentos em um negócio de embalagens biodegradáveis. São recipientes feitos de materiais como amido, glúten de trigo e proteína de peixe, que se dissolvem 20 dias após contato com o mar ou a terra – uma embalagem de plástico leva mais de cem anos para se decompor. Como o material é orgânico, tudo é reabsorvido pela natureza sem prejuízo ambiental.
— Temos um acúmulo crescente de plástico na terra e no mar, e queremos apresentar uma alternativa sustentável para enfrentar esse problema — explica Vilásia.
Devido à proximidade com o oceano, ela tem matéria-prima em abundância para sua pesquisa, que depende muito de elementos extraídos do pescado. É graças à proteína do peixe que consegue criar embalagens de alta resistência mecânica e térmica. Um dos protótipos tem a dimensão de um ravioli e pode servir de sachê para condimentos como mostarda, catchup e maionese. Também pode armazenar porções individuais de biscoitos ou temperos para serem servidos em aviões, por exemplo. Outro recipiente, que tem como matéria-prima a chia, pode conter uma dose de café e ser diluída junto na água quente..
— Temos protótipos de embalagens pequenas, mas, se conseguirmos dar escala à produção, poderemos levar a inovação aos produtos que são vendidos em grandes redes de supermercados — projeta Vilásia.
Esse é o principal desafio da pesquisadora: encontrar formas de produzir as embalagens em escala industrial para começar a fornecer para grandes clientes. Ela espera que a mentoria no Oceantec a ajude superar o desafio, o que levaria também a uma redução no valor das embalagens, que podem custar o dobro do que as convencionais – diferença que pode barrar a chegada ao consumidor.
— Já recebi ligação de algumas empresas querendo que forneçamos as embalagens, mas precisamos antes conseguir produzir em alta quantidade mantendo a qualidade — explica a empreendedora.
Na incubadora, o projeto de Vilásia tem como vizinhos dois doutores em aquicultura que desenvolveram formas inéditas de extrair a gordura ômega 3 de microalgas. Agora, montam uma empresa para levar a tecnologia à indústria. Durante o período como estudantes, Bruno Galler Kubelka e Fábio Roselet descobriram como concentrar grandes quantidades de microrganismos marinhos em espaços pequenos. Assim, superaram um problema de custo crucial para esta pesquisa, que é a necessidade de centrifugar volumes gigantescos de água para encontrar os pequenos fragmentos de algas.
— O ômega 3 e outras substâncias extraídas de microalgas são valiosos para indústrias como a farmacêutica, a cosmética e a de alimentos — explica Kubelka.
Ao ir direto às algas, a pesquisa criou um “atalho” para a obtenção do ômega 3, que hoje é extraído do peixe (que se alimenta da microalga), o que representa uma barreira comercial para a venda de produtos a veganos. Isso pode significar a abertura de uma nova oportunidade para indústrias instaladas no país.
— No Brasil, ninguém trabalha ainda com esse tipo de tecnologia — assegura Roselet.
As microalgas são criadas em tanques de cultivo no Instituto de Oceanografia da Furg na Praia do Cassino, uma vez que há limitações e custos elevados para extraí-las do fundo do oceano. Além do ômega 3, os pesquisadores têm conseguido extrair lipídio e proteína do microrganismo, que também pode gerar produtos inovadores. Agora, seu desafio é atrair investidores que financiem a transformação do projeto em uma estrutura de alta produção, que possa fornecer matéria-prima a grandes empresas.
Nova chance no Polo
Um efeito paralelo do Oceantec é conseguir hospedar parte dos trabalhadores altamente especializados que acabaram perdendo seus empregos com a paralisação do Polo Naval. É o caso de Moisés Borges, um dos fundadores da Augen Engenharia & Inovação. Depois de quase três anos trabalhando como coordenador de montagem na Engevix Construções Oceânicas, o engenheiro foi demitido em dezembro de 2016, em um corte que ceifou mais de 3 mil empregos em Rio Grande.
Dois anos depois, juntou-se a dois amigos para criar uma startup que incorporaria tecnologias inovadoras em estações de tratamento de água – que podem reduzir em até 30% o uso de aditivos químicos, além de trazer ganho operacional. Como sinal de prosperidade do negócio, a Augen firmou um contrato com a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) para ajudar a modernizar seus equipamentos – projeto que em breve deve ser patenteado.
— Na incubadora, utilizamos salas de reunião e treinamento, openLab (laboratório aberto) e absorvemos a mão-de-obra gerada na Furg. Isso facilita muito o crescimento da empresa — explica Borges.
Com a crença de que há muita água para rolar no desenvolvimento tecnológico da cidade, o Oceantec prepara a inauguração de um segundo prédio até o final deste ano. A ideia é que a nova estrutura possa multiplicar a quantidade de empresas e acelerar o lançamento de produtos inovadores das profundezas do Atlântico.
Ambiente de inovação
Parque Científico e Tecnológico da Furg (Oceantec)
O que é?
Parque que recebe startups em diferentes fases de formação em Rio Grande.
Qual a importância?
Ajudar pesquisadores e alunos recém formados a transformarem seus projetos em produtos e serviços inovadores.
Quantas pessoas participam do projeto?
São nove empresas no local, que geram 50 empregos. Ainda em 2019, mais 10 projetos devem ser incubados.
Mais informações
oceantec.furg.br