Diz uma anedota de Caxias do Sul que um gringo não pode ver o jardim do outro florescer sem tomar uma providência. Ele aprenderá tudo sobre jardinagem, comprará as melhores mudas e deixará seu quintal colorido e verdejante — sem pedir ajuda a ninguém, tampouco dividir seu segredo. O causo ilustra uma rivalidade que remete ao início da colonização e se agarrou à cultura de grandes indústrias da Serra. As empresas da região cresceram com a gana de superar a concorrência, sem pedir pitaco aos vizinhos.
Era uma fórmula que ia bem até meados desta década, quando a crise financeira e a onda mundial de inovação, baseada na colaboração, colocaram o modelo em xeque. As empresas da Serra passaram a ser desafiadas por um mercado em recessão e tomado por concorrentes cada vez mais modernos.
— As indústrias da região se acostumaram a pensar em casa em novos produtos ou soluções para a própria administração. Mas este é um modelo que trava o crescimento e pode ser fatal em momentos de crise — diz Enor Tonolli Jr., coordenador executivo do Parque de Ciência, Tecnologia e Inovação da Universidade de Caxias do Sul (Tecnoucs).
— Talvez por isso essas empresas tenham mudado tanto a forma como trabalham a inovação nos últimos anos — completa.
Desde 2018, indústrias nascidas em Caxias ou em municípios vizinhos têm dado abertura para que jovens empresas de tecnologia percorram suas fábricas com soluções inovadoras, em particular para resolver problemas que se perpetuavam em atividades como recrutamento, marketing, logística e até nos próprios produtos.
Na fabricante de carrocerias de ônibus Marcopolo, uma parceria com a startup Soha, de Porto Alegre, está desenvolvendo um mecanismo para tornar a experiência de transporte mais segura ao passageiro e rentável às companhias viárias. As empresas se uniram para fazer uma poltrona com sensores que indicam quais assentos estão ocupados e se os ocupantes estão com os cintos afivelados — informações que ajudam o motorista a ter melhor controle e tornam mais precisos os dados sobre a quantidade de pessoas transportadas em cada trecho.
— A proximidade com as startups é um passo importante dentro de uma estratégia de open innovation (inovação aberta, em inglês, que significa desenvolver pesquisas e criar melhorias com a colaboração de outras empresas), e nos dá mais agilidade para implementar melhorias na empresa e nos produtos — explica Petras Amaral Santos, head de inovação da Marcopolo.
Emissários da criatividade
Para as startups, estar próximo aos titãs da indústria também é precioso. As jovens empresas têm oportunidade de conhecer necessidades de grandes clientes e aprimoram seus softwares. Até se aproximar da Marcopolo, a Soha só havia vendido sensores para transporte individual, em que proprietários de táxi veem pelo celular quando o veículo está ocupado e quantos quilômetros já percorreu.
— Com esta parceria, estamos adequando a solução ao transporte coletivo, o que nos abre um importante mercado — afirma Renan Signor, sócio-fundador da Soha.
A parceria ainda está em prova de conceito (fase em que se avalia se a ideia pode efetivamente ser incorporada a um produto), e, se emplacar, poderá estar disponível em breve nos produtos da Marcopolo — a empresa não especifica prazo.
Criada no final dos anos 1940, a fabricante de implementos rodoviários Randon percorre caminho semelhante. Em 2016, a empresa passou a enviar emissários a alguns dos mais importantes parques tecnológicos do mundo com a missão de trazer ideias disruptivas e modelos de gestão mais eficientes. A ação, batizada de Randon Exo, vem mostrando como grandes empresas no mundo estão se beneficiando da proximidade com startups para reduzirem custos e se modernizarem.
— As indústrias encarregam seus setores de pesquisa e desenvolvimento (P&D) de pensar principalmente nos produtos, mas raramente conseguem inovar em processos como recrutamento, seleção, avaliação de talentos e marketing. As startups são perfeitas para esse tipo de inovação, pois já chegam com a solução pronta — diz Daniel Ely, diretor de Recursos Humanos e Planejamento das Empresas Randon.
O primeiro resultado prático da Exo foi a aproximação com empresas tecnológicas nascidas em parques universitários brasileiros. Gradativamente, alguns projetos foram incorporados aos setores administrativos da Randon. O primeiro deles melhorou a plataforma de candidatura a vagas de emprego na companhia, filtrando as qualidades de cada candidato e cruzando com as exigências do cargo.
União das empresas
A experiência foi tão certeira que levou a Randon a acelerar a parceria com startups: hoje, há 30 empresas de tecnologia ajudando a companhia a melhorar processos e produtos. Uma delas é a Sirros, de São Leopoldo, que instalou dispositivos para monitorar a movimentação das carretas na linha da fábrica. A solução possibilita que os responsáveis pela produção acompanhem, em um tablet ou notebook, a posição de cada carreta no processo de produção. Até então, o trabalho era feito por funcionários, o que atrasava a geração de relatórios e abria risco para imprecisões.
— Agora, os engenheiros podem acompanhar quantas carretas já foram produzidas ao longo de um turno e em qual etapa da linha de montagem cada produto está, atualizando em tempo real o prazo de entrega aos clientes — explica Diego Schlindwein, fundador da Sirros.
A Sirros foi contratada graças a um movimento nascido no ano passado, que uniu quatro das maiores indústrias da Serra Gaúcha: além de Marcopolo e Randon, envolveu a fabricante de materiais elétricos Soprano e a indústria de móveis planejados Florense, de Flores da Cunha. Batizada de Hélice, a ação conectou startups que pudessem ajudar as empresas a trazerem mais tecnologia para suas áreas administrativas e operacionais.
— O lançamento do Hélice é muito simbólico quanto à mudança de mentalidade das indústrias, que deixaram de lado o receio de trabalhar em conjunto e começaram a unir esforços para procurar soluções para "dores" comuns — analisa Thomas Job Antunes, executivo do Hélice.
As gigantes da região ajudaram a financiar o instituto, que ganhou sede no hub de inovação Oca, no centro de Caxias. O projeto ficou famoso na comunidade criativa brasileira por ser um dos raros movimentos de inovação puxado por um grupo de empresas, e não pelo poder público ou universidades.
A primeira medida prática do Hélice, em 2018, foi a contratação de uma aceleradora de São Paulo para ajudar na busca por startups que pudessem fornecer tecnologias capazes de melhorar a eficiência das quatro empresas. De 250 empresas de tecnologia pré-selecionadas, 15 foram convidadas a ir a Caxias apresentar seus serviços e nove foram contratadas pelas indústrias.
Uma nova fase do Hélice foi lançada neste ano, com 13 empresas participantes, inclusive dos setores de comércio e serviços. O movimento ganhou status de instituto e recebeu o Tecnoucs e a empresa de tecnologia caxiense Metadados como novos mantenedores. Com participação da aceleradora Ventiur, de Porto Alegre, um fundo de R$ 4,5 milhões está em criação para ajudar startups da Serra Gaúcha a crescer – e ter maior protagonismo no projeto, já que na primeira fase apenas uma startup da cidade, a Pyxie, se encaixou nas necessidades das fabricantes.
— É mais um passo para deixarmos para trás a cultura da escassez, em que todos brigavam por recursos, e incorporarmos a da abundância, em que todos compartilham suas conquistas — resume Antunes.
Hub de inovação
Oca Brasil
- O que é: local composto por coworking, startups e espaços para cursos e alguns MBAs de universidades da Serra.
- Quantas pessoas participam do projeto: são 47 empresas instaladas, com envolvimento de 500 pessoas.
- Qual é a importância: a Oca Brasil integra diferentes atores da inovação de Caxias do Sul e serve de base para o Instituto Hélice, que aproxima empresas tradicionais de startups.
- Mais informações: no site www.oca.network/