A apreensão de drogas sintéticas pela Polícia Civil mais do que triplicou na última década no Rio Grande do Sul. É o que indicam dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Estado, que contabiliza mensalmente as ações policiais. Para especialistas, fenômeno reflete aprimoramento de investigações sobre o tema e mudanças no consumo e distribuição dessas substâncias.
Entre janeiro e outubro de 2014, 1.153 pontos de LSD foram apreendidos no RS. Dez anos depois, no mesmo período, a polícia recolheu 13.429 pontos, um volume mais de 10 vezes maior. O salto é de 1.065% de 2014 a 2024.
O mesmo padrão se repete com o ecstasy. Em 2014, foram retirados das ruas 8.353 comprimidos da droga entre janeiro e outubro. Em 2024, no mesmo recorte temporal, o número alcançou 62.964, um aumento de 654% na apreensão de compridos, ou seja, mais de seis vezes mais do que há 10 anos.
Apesar da crescente histórica, alguns anos apresentam oscilações nos indicadores. Entre 2022 e 2023, por exemplo, as apreensões de LSD diminuíram ligeiramente, saindo de 12.001 para 10.242 pontos recolhidos pelos policiais civis, uma queda de 15%. Neste período, contudo, as apreensões de ecstasy subiram de 66.550 para o recorde histórico de 77.217 comprimidos.
Também houve uma queda entre o ano passado e esse. A polícia confiscou menos comprimidos de ecstasy (62.964) entre janeiro e outubro se comparado a 2023, quando os 77.217 foram retirados de circulação.
Fatores ajudam a explicar alta histórica
Salto nas apreensões desse tipo de droga pode estar relacionado ao aprimoramento de investigações sobre sintéticos. Ao longo da última década, conforme o diretor da Divisão de Investigações do Narcotráfico (Denarc), delegado Alencar Carraro, a Polícia Civil buscou realizar ofensivas contínuas contra o tráfico de drogas, tendo como foco investigar e monitorar narcotraficantes, assim como mapear e fechar laboratórios de produção de sintéticos.
— Nós localizamos, todos os anos, várias fabriquetas que produzem essas drogas sintéticas. E quando conseguimos localizar e fechar essas fábricas, normalmente apreendemos grandes volumes de drogas. Também temos importadores, sobretudo de Santa Catarina, que conseguimos realizar ações de apreensão — contextualiza.
Após a pandemia de covid-19, houve uma explosão nas apreensões deste tipo de substância, conforme os dados contabilizados pela SSP. Conforme o delegado, isso acontece porque a pandemia alterou profundamente o mercado de drogas sintéticas, trazendo um aumento no consumo e ampliação nos formatos de distribuição.
— Antes você tinha o uso de drogas atrelado às biqueira. No caso das sintéticas, o uso em ambiente de festas de música eletrônica, em raves. Com a questão da contenção social, os traficantes começaram a criar formas de vender e entregar as substâncias. E aí as telentregas aumentaram muito e as drogas sintéticas começaram a ser entregues em casa. Começaram a ser distribuídas como se fossem maconha e cocaína — explica Carraro.
Questão emocional
A epidemia de covid-19 também trouxe alterações sociais e impacto na saúde mental de grande parte da população, o que pode ter relação com o aumento do consumo de drogas, avalia Andrei Garziera Valerio, especialista em álcool e drogas e diretor do Departamento de Psiquiatria Forense da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul.
— A pandemia e a própria enchente são fatores estressantes que fazem com que as pessoas queiram se anestesiar, compensar a tragédia, a dor, o mal-estar, com alívios - nesse caso com a droga — pontua o especialista.
Barateamento e telentrega
A introdução de sintéticos nos serviços de tele-droga não apenas facilitou o acesso, anteriormente atrelado à cultura cluber, mas fez com que novos públicos se tornassem usuários desse tipo de entorpecente. No mesmo sentido, aqueles que já usavam sintéticos passaram, com as telentregas, a comprar e consumir em maior quantidade.
— Em entrevistas que fizemos com alguns usuários, eles nos disseram que passaram a consumir mais para valer a pena o valor da telentrega — esclarece o delegado Carraro.
O barateamento de insumos para a produção de drogas e, consequentemente, a diminuição do valor e qualidade delas é outra variável que pode ter relação com o aumento dos índices.
Risco maquiado
Embora mais acessíveis atualmente, as drogas sintéticas historicamente possuem um público específico. Segundo a polícia, a maioria dos usuários tende a ser jovem, com faixa etária de 12 a 20 anos, de classe média.
— A glamorização dessa droga, ela ser considerada "cool", empurra o jovem para o consumo da substância. Eles botam o adesivo com o bichinho do momento, com a cor que está na estação para ser atrativo para o jovem. Eles investem em um design diferenciado, uma linguagem que dialogue com o jovem. É o símbolo que negocia com o jovem, porque tem o interesse da indústria da droga por trás, para poder vender mais — analisa o especialista em álcool e drogas e psiquiatra forense.
A crença popular de que esse tipo de substância é menos nociva também estimula o consumo. Valerio, que também é médico perito do Instituto-Geral de Perícias (IGP), ressalta que a ingestão de qualquer tipo de droga é prejudicial, principalmente no período de desenvolvimento, como na faixa etária dos 12 aos 20 anos, podendo trazer consequências permanentes.
— Existe na cultura popular de que uma droga só é nociva pelo efeito agudo dela. Por exemplo, o crack em algumas semanas de uso faz a pessoa comprometer completamente diversos aspectos da vida dela. A droga sintética não faz essa desorganização tão aguda. O que acontece depois de um período é a pessoa começar a se deprimir, ter crises de pânico, fissura, oscilações de humor. Para quem tem a genética favorável, isso vem de uma forma mais potente e imediata, com psicose, irritabilidade, indução a questões demenciais, perda cognitiva. A longo prazo, doenças e transtornos mentais podem ser desencadeados, como esquizofrenia, bipolaridade, alucinações permanentes. Essas drogas também podem encaminhar para suicídio, automutilação — acrescenta.
Segundo o delegado Carraro, também existe um risco atrelado ao uso de drogas sintéticas que envolve a escalada na utilização de diferentes entorpecentes. Dessa forma, elas serviriam como uma porta de entrada para substâncias com efeitos físicos e emocionais mais imediatos, como crack, cocaína, etc.
Ações educativas ajudam a prevenir
O psiquiatra ressalta que, ao mesmo passo que a glamorização do uso de drogas sintéticas pode contribuir para o aumento de usuários, ações de conscientização podem ter um papel para a queda do consumo.
— Uma diminuição seria possível com campanhas educativas nas escolas, empresas e comunidades. Focar em ações de qualidade de vida nas populações, com cultura, lazer, esporte. Também ajudaria a repressão e supressão de propaganda nas mídias sociais e o desenvolvimento e investimento em programas de tratamento em saúde pública focados em recuperação e tratamento adequado aos usuários — pontua.
Carraro pontua que, para além de ações repressivas da Polícia Civil, a instituição vem trabalhando em projetos educativos para conscientizar, sobretudo os jovens, sobre os riscos do envolvimento com drogas. Um dos projetos é o "Papo de Responsa", que tem atuação junto às escolas de Ensino Fundamental e Médio, sejam elas públicas ou privadas.
Nessa iniciativa, policiais civis promovem um "papo" descontraído com as crianças e adolescentes sobre as consequências advindas do tráfico e consumo de drogas. O Papo de Responsa inicia através de um convite das instituições interessadas em participar. É preciso realizar um agendamento no site do programa. Também é possível acompanhar o projeto pelo Instagram @papoderesponsarsoficial.
Entenda o assunto
- O que é droga sintética: considerando o contexto criminal, as drogas sintéticas são aquelas substâncias sintetizadas em laboratórios, a partir de diferentes componentes químicos, objetivando um produto com efeito psicotrópico.
- Principais drogas sintéticas em circulação: as mais conhecidas são as anfetaminas, como o MDMA, MDA e metanfetamina, que são encontradas principalmente na forma de comprimidos artesanais ou cristais, e o LSD, que é encontrado impregnado em fragmentos de papel. Além dessas, é observada uma tendência de crescimento em novas substâncias psicoativas, criadas com intuito de burlar a legislação e dificultar a sua detecção pelos órgãos periciais, destacando dentre elas os canabinoides sintéticos, o 2C-B e o 25B-NBOH.
- Efeitos das drogas sintéticas: são muito variados, mas podemos classificá-los conforme a sua ação no sistema nervoso central, sendo agrupados em: estimulantes, que geram uma sensação de euforia ou agitação; depressores, que provocam torpor ou relaxamento; perturbadores, que alteram a atividade cerebral e a percepção, podendo ter efeitos alucinógenos.
*Fonte: Instituto-Geral de Perícias (IGP-RS)
Denúncias e ajuda
- É possível contatar o Denarc para realizar denúncias anônimas ou obter informações pelo telefone 08000-518-518.
- Comunicações também podem ser feitos pelo e-mail denarc@pc.rs.gov.br.
- Presencialmente, é possível procurar o Denarc na Avenida Presidente Franklin Roosevelt, número 88, no bairro Navegantes, em Porto Alegre.