O assassinato de João Alberto Silveira Freitas completa quatro anos nesta terça-feira (19). O homem negro de 40 anos foi espancado e morto no estacionamento de um supermercado do Carrefour na zona norte de Porto Alegre.
Apesar das conclusões da Polícia Civil e do Ministério Público, que apontaram o racismo como motivo torpe, uma das três qualificadoras do homicídio, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) afastou essa hipótese. Por isso, os seis réus pelo crime hoje respondem por homicídio duplamente qualificado (meio cruel e recurso que dificultou a defesa da vítima). As qualificadoras são circunstâncias do crime que podem agravar a pena em caso de condenação.
O processo está na fase de recursos e não há prazo para a realização do júri, um julgamento com a participação de cidadãos. O processo tramita sob sigilo.
Como foi o crime
O crime ocorreu na noite de 19 de novembro de 2020. Segundo as investigações, João Alberto foi contido por seguranças terceirizados após uma confusão no caixa do supermercado. O cliente, que estava acompanhado da esposa, foi levado até o estacionamento, onde foi espancado até a morte.
Testemunhas gravaram as agressões em vídeo. Outras quatro pessoas, entre funcionários do Carrefour e da empresa de segurança terceirizada, teriam auxiliado na imobilização de João Alberto e impedido tentativas de socorro à vítima, segundo a apuração da polícia.
Os dois seguranças terceirizados foram presos em flagrante. De acordo com necropsia feita pelos legistas do Departamento Médico Legal, a vítima foi morta por asfixia.
O que a polícia e o MP concluíram
O inquérito policial foi concluído em cerca de três semanas. Segundo a delegada responsável pelo caso, foi possível identificar que houve um exagero nas agressões impostas à vítima, resultado da fragilidade socioeconômica e da cor da pele de João Alberto.
— Nós fizemos uma análise conjuntural de todos os aspectos probatórios e doutrinários e concluímos, portanto, que o racismo estrutural que são aquelas concepções arraigadas na sociedade foram sim, fundamentais, no determinar da conduta dessas pessoas naquele caso — disse a delegada Roberta Bertoldo, na época.
O Ministério Público também apontou o racismo estrutural como uma das qualificadoras do crime, além do meio cruel e do uso de recursos que dificultaram a defesa da vítima.
— Além da torpeza ligada ao preconceito racial, nós temos o uso do meio cruel que seria asfixia, além da agressão brutal e desnecessária, junto ao final com o recurso que dificultou a defesa — explicou o promotor André Martinez, em dezembro de 2020.
Quem são os acusados
- Magno Braz Borges, segurança da empresa terceirizada
- Giovane Gaspar da Silva, segurança da empresa terceirizada
Ambos estão presos preventivamente. Segundo o processo, os réus constrangeram e provocaram a vítima, a acompanhando até a saída do mercado. Os seguranças são acusados de empregar "violência imoderada", desferindo socos e chutes, inclusive contra a cabeça de João Alberto.
Eles também são acusados de ter aplicado a compressão torácica causadora da asfixia que matou a vítima. De acordo com a ação judicial, os seguranças ainda ignoraram os pedidos de socorro de João Alberto.
- Adriana Alves Dutra, fiscal do Carrefour
Está em prisão domiciliar, por motivos de saúde, preventivamente. De acordo com o processo, a acusada manteve o domínio da ação de seus comparsas, pois tinha comando hierárquico sobre eles. A denúncia aponta que a ré coordenou a ação dos demais, orientou a imobilização de João Alberto, ignorou os pedidos de socorro e impediu a aproximação de terceiros.
- Kleiton Silva Santos, funcionário do supermercado
- Rafael Rezende, funcionário do supermercado
Aguardam o julgamento em liberdade. Também conforme a ação judicial, atenderam ao chamado de apoio dos demais réus, desferiram socos e agiram para imobilizar João Alberto. Os três também teriam ignorado os pedidos de socorro, impedindo a aproximação de terceiros.
- Paulo Francisco da Silva, segurança da empresa terceirizada
Aguarda o julgamento em liberdade. O acusado também teria atendido ao chamado de apoio dos colegas, contendo a aproximação de terceiros e ignorando pedidos de socorro.
Por quais crimes eles respondem
Os seis réus respondem por homicídio duplamente qualificado.
- Emprego de meio cruel: após a vítima ter sido espancada, foi morta por compressão torácica que lhe ocasionou asfixia por sufocação indireta.
- Meio que dificultou a defesa da vítima: os réus agiram em superioridade numérica e assim puderam dominar João Alberto.
Em 19 de julho de 2024, a 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do RS afastou a qualificadora do motivo torpe. O Ministério Público recorreu da decisão ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), afirmando que "se trata de situação relevante ao julgamento do fato pelo Tribunal do Júri de motivações referentes ao preconceito racial e à condição de vulnerabilidade econômica de João Alberto".
Ao longo da fase de instrução processual, foram ouvidas 38 testemunhas, sendo nove indicadas pelo Ministério Público e 29 apresentadas pelas defesas. Os seis réus já foram interrogados.
O que dizem as defesas dos réus
As defesas de cada um dos seis réus apresentaram os seguintes argumentos ao Judiciário:
- Magno Braz Borges: pede que o caso não seja julgado por um júri ou que ocorra o afastamento das qualificadoras do homicídio, também solicita a revogação da prisão ou a substituição por medidas cautelares.
- Giovane Gaspar da Silva: pede absolvição sumária, alegando legítima defesa. Solicitou também o afastamento das qualificadoras.
- Adriana Alves Dutra: pede a absolvição sumária, alegando não haver domínio do fato pela condição de superior hierárquica. Ainda solicita o afastamento do dolo eventual, classificando o crime como culposo, aquele em que não há a intenção.
- Kleiton Silva Santos: pede que o caso não seja julgado por um júri, alegando que teria agido por erro de terceiro. Também solicita a desclassificação para lesão corporal ou homicídio culposo, alegando participação de menor importância. Também demanda o afastamento das qualificadoras.
- Rafael Rezende: pede que o caso não seja julgado por um júri, alegando ausência de requisitos, e o afastamento das qualificadoras.
- Paulo Francisco da Silva: pede que o caso não seja julgado por um júri, alegando ausência de sua participação no fato, além do afastamento das qualificadoras.
O que diz a família de João Alberto
O advogado Gustavo Nagelstein, que representa a viúva, afirma que João Alberto era o provedor da casa, além de atender o pai idoso e filhos de um casamento anterior.
— Na esfera criminal, nós temos quatro anos já de processo, ele está numa fase intermediária, talvez isso se estenda por mais dois, três, quatro anos, sem qualquer responsabilização desses réus — afirma.
O que diz o Carrefour
Após o crime, o Carrefour firmou um termo de ajustamento de conduta (TAC), destinando R$ 115 milhões para políticas de combate ao racismo. O Ministério Público e a Defensoria Pública acompanham o cumprimento das medidas acordadas.
Em nota, o Carrefour afirma que assumiu "um compromisso com o enfrentamento ao racismo" e que presta "acolhimento a nove membros da família de João Alberto".
A empresa Vector, responsável pelos seguranças terceirizados, também assinou um TAC, com medidas de combate ao racismo estrutural.
Notas das defesas dos réus
Advogado Jairo Luis Cutinski, que representa Magno Braz Borges: "A defesa aguarda julgamento de recursos."
Advogado Renan Jung, que representa Paulo Francisco da Silva: "A Defesa do acusado Paulo Francisco informa que já recorreu ao STJ para buscar a sua impronuncia, uma vez que não vieram aos autos quaisquer provas indicando, minimamente, que Paulo teria participado dos fatos apurados. A Defesa reitera que Paulo Francisco não teve qualquer participação no lamentável acontecimento que ceifou a vida da vítima João Aberto Freitas. Paulo não laborava como segurança do supermercado, mas no setor de recepção dos funcionários. Foi chamado via rádio, seguindo ordens de seus superiores hierárquicos, e chegou ao local dos fatos já ao final do desenrolar de toda a situação. Em momento algum agrediu ou mesmo tocou a vítima, tampouco impediu que terceiros prestassem socorro. Por fim, a Defesa salienta que Paulo é pessoa NEGRA, sua esposa é NEGRA, seus filhos são NEGROS, seus familiares são NEGROS, seus melhores amigos são NEGROS, sendo, portanto, absurda a acusação por, supostamente, dar causa a um homicídio, que, segundo a denúncia, teria sido motivado por racismo, tese esta que restou rechaçada pelo TJRS ao decidir por afastar a qualificadora do motivo torpe (racismo estrutural)."
As defesas dos demais réus não responderam até a atualização mais recente desta reportagem.
Nota do Carrefour
"Há mais de 10 anos o Grupo Carrefour Brasil tem uma plataforma de inclusão e diversidade e sempre pautou suas ações e iniciativas pelo respeito e pela ética, sendo intolerável qualquer tipo de agressão, discriminação e preconceito. Mesmo assim, a tragédia com João Alberto Freitas, em novembro de 2020, mostrou que os esforços não eram suficientes e exigiu que evoluíssemos, assumindo um compromisso com o enfrentamento ao racismo. Esse compromisso se materializou em ações concretas e uma transformação de dentro para fora. Além de prestar acolhimento a nove membros da família de João Alberto, o Grupo iniciou a implementação de ações transversais, permanentes e contínuas, voltadas para educação interna e externa; mudança de cultura — com a Inclusão sendo pilar transversal a tudo o que fazemos —; mudanças significativas em políticas e protocolos de atuação — incluindo Política de Consequências —; além da fomento de iniciativas externas de pessoas negras. O objetivo é construir um ambiente cada vez mais inclusivo, que possa reverberar na sociedade. Iniciativas, como a implementação pioneira de quatro mil câmeras corporais para nossos fiscais internos e seguranças externos, foram além do compromisso firmado com o Ministério Público em 2021, a partir da assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta no valor de R$ 115 milhões. Nossos times são treinados anualmente em letramento racial e também em um curso chamado Eu Pratico Respeito, que fala sobre protocolos de relacionamento entre colaboradores e clientes. Somos 130 mil colaboradores interagindo com 60 milhões de clientes todos os meses. E, como maior varejista do Brasil, a companhia entende sua responsabilidade e posição de influência, trabalhando para que todas as interações em seus espaços aconteçam em um ambiente seguro, livre de preconceito e racismo. Sabemos que a jornada é longa e seguiremos firmes com o objetivo de transformar e impactar positivamente a vida de milhares de pessoas em todo o Brasil."