Ao longo do último ano, o Judiciário gaúcho determinou, em média, 479 medidas protetivas por dia. O total foi de 175.053 ordens judiciais na tentativa de proteger mulheres vítimas de violência doméstica. Em comparação com 2022, há um aumento de 28%. O primeiro mês de 2024 evidencia que essa tendência de crescimento continua. No comparativo com janeiro do ano passado, a elevação é de 26%. Os dados são da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid) do Tribunal de Justiça do Estado.
Esses números vêm crescendo ao longo dos últimos anos, segundo juíza-corregedora Taís Culau de Barros, coordenadora da Cevid. O indicador, conforme a magistrada, não representa o total de mulheres atendidas, mas de medidas protetivas decretadas. Isso porque, para a mesma vítima, podem ser deferidas ordens diferentes.
— Esse crescimento vem acontecendo de forma histórica. Cada ano, são pedidas mais medidas protetivas. Acredito que isso dê devido à maior consciência das pessoas sobre a possibilidade de buscar ajuda. Nós sabemos que os casos de violência doméstica ainda são em números alarmantes, ainda terminam muitos em feminicídios, então, o fato de serem buscadas mais medidas protetivas é muito benéfico. Significa que as pessoas estão buscando ajuda para esse problema, que é crônico — avalia.
Em abril do ano passado, foi sancionada lei para facilitar o acesso das vítimas de violência doméstica às medidas protetivas. Com a mudança, a Lei Maria da Penha passou as prever que as medidas devem ser concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência. Além disso, as ordens devem permanecer em vigor enquanto houver risco às vítimas.
Na análise da juíza, qualquer iniciativa com esse intuito, de facilitar o acesso às formas de proteção, impacta nos resultados. Da mesma forma, as campanhas que buscam orientar as vítimas sobre como podem pedir ajuda também são vistas como positivas. Outro ponto ressaltado é a mudança de visão sobre o que é violência doméstica. Tudo isso, na ótica da juíza, tem permitido que mais mulheres rompam o silêncio.
— As mulheres estão se dando conta de que muitas vezes esse ciclo de violência começa de forma psicológica, com uma diminuição da autoestima, insultos, chantagens, e depois vai aumentando até a violência física. Há, sem dúvidas, um número maior de mulheres que tem procurado a medida protetiva num estágio anterior, não menos grave, porque é igualmente grave, mas que se dão conta de que há como buscar recurso, quando ela está sofrendo essa perseguição contumaz, essas manipulações, essas intimidações dentro desse contexto de violência doméstica — afirma.
Rede de proteção
Para que as mulheres consigam acessar as medidas, é necessário primeiro que elas rompam com o silêncio e busquem ajuda. Manter redes de apoio articuladas, para orientação, acolhimento e abrigamento dessa vítima, inclusive entre as pessoas que estão no entorno da mulher, para que ela não se sinta isolada, e criar políticas públicas que permitam, inclusive, a inserção no mercado de trabalho e acesso a uma fonte de renda própria são ações apontadas como importantes para que o processo de enfrentamento à violência se concretize.
— É muito importante que a rede de apoio dessas mulheres, não só a polícia, o Poder Judiciário, o Ministério Público, mas a sua vizinhança, os seus familiares, estejam próximos para quando essa mulher tiver a coragem de romper esse ciclo. Isso é muito difícil. Ela está há muitos anos, normalmente dentro desse ciclo de violência, com muita dificuldade de sair. É uma espiral, porque existe a violência, mas depois existe a fase em que aquela pessoa que ela ama pede desculpas, se arrepende. É muito difícil a pessoa romper esse ciclo. É importante que os que estão perto deem apoio — orienta a juíza.
No ano passado, dos 87 casos de feminicídio registrados, em 88% deles as vítimas não tinham medida protetiva e em 72% não havia registro policial anterior. O número de mulheres que morreram tendo medida protetiva caiu no comparativo com 2022, quando chegou a quase 20% das vítimas.
— As medidas, como regra, têm efeito de salvar uma vida. Muitas vezes a impressão que se têm é de que a medida não é efetiva, mas, ao contrário, ela é. Os números mostram, principalmente nos casos de feminicídio. Na maior parte deles, as mulheres não tinham medida protetiva no momento em que houve, infelizmente, o feminicídio. Isso demonstra que, quando se tem a medida, normalmente não se chega nesses casos mais graves — afirma a magistrada.
Existem várias medidas protetivas possíveis, entre elas, está o afastamento do agressor do lar e proibição de aproximação da vítima, considerados os mais comuns. Em outros casos, a Justiça pode determinar, por exemplo, o recolhimento de arma de fogo. É essencial que, em caso de descumprimento da medida de afastamento, as vítimas busquem as autoridades, como a polícia, e registre esses atos. Nestes casos, a Polícia Civil pode pedir a prisão preventiva do agressor.
Outras ações
Algumas iniciativas foram fortalecidas nos últimos anos com intuito de encorajar mais mulheres a buscar ajuda e proteger aquelas que conseguem romper o silêncio e quebrar o ciclo da violência doméstica. Em maio do ano passado, o governo do Estado deu início a um programa de monitoramento de agressores com uso de tornozeleiras eletrônicas. O projeto, que se iniciou por Porto Alegre e Região Metropolitana, já se expandiu para outras regiões do Estado.
Neste programa, a mulher recebe um celular e deve manter o aparelho por perto para que o rastreamento seja eficaz. Se o agressor desrespeitar a medida protetiva, um alerta é emitido. Caso ele persista na aproximação, um segundo alarme é disparado, junto a um mapa, que mostra a localização em tempo real para que a mulher possa pedir ajuda ou se afastar. Ao longo do ano passado, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública do Estado, 25 agressores foram flagrados descumprindo a medida protetiva, e acabaram presos.
Outras medidas continuam sendo empregadas no Estado, como as Patrulhas Maria da Penha, da Brigada Militar, que fiscalizam o cumprimento das medidas protetivas, e as Salas das Margaridas, espaços criados para atendimento mais humanizado e acolhedor às mulheres vítimas de violência doméstica nas delegacias da Polícia Civil.
Sobre o tema, em razão da orientação da Associação dos Delegados de Polícia para que a categoria não conceda entrevistas, como forma de tentar pressionar o governo do Estado para avançar nas negociações salariais, a Polícia Civil se manifestou por meio de nota. No texto, a instituição informou que "reafirma a importância das mulheres registrarem ocorrências e solicitarem medidas protetivas de urgência, bem como reafirma seu compromisso em buscar sempre a qualificação dos servidores para o adequado acolhimento das vítimas". Há também o entendimento de que o aumento do número de medidas "pode ser interpretado como um melhor acesso das vítimas ao sistema de justiça e segurança pública, tendo um viés positivo".
Os casos
Em 2023, o Estado teve redução de 21,6% dos casos de feminicídios. Foram 87 casos de mortes de mulheres nesse contexto, enquanto em 2022 tinham sido 111. Em janeiro deste ano, no entanto, o número de assassinatos de mulheres em contexto de gênero voltou a crescer no Estado. O RS registrou ao menos 12 casos de feminicídios no primeiro mês de 2024, segundo levantamento realizado por GZH. No mesmo período do ano passado, tinham sido 10 casos, conforme a Secretaria da Segurança Pública do Estado. Também em janeiro, houve acréscimo no número de medidas, com uma média de 641 por dia.
— A gente tem que tentar educar as nossas crianças para mudar a cultura desde pequeno. Educar às crianças para a igualdade de gênero, para o respeito às mulheres e meninas, que as meninas têm direito a ser quem elas querem, a fazer o que elas quiserem, a terem uma vida plena e livre. Infelizmente, a nossa sociedade ainda não tem essa igualdade, e a violência decorre dessa sensação que ainda existe de que a mulher pode ser posse, pode ser um objeto — diz a juíza.
Tire suas dúvidas
Quem pode pedir medida protetiva?
Qualquer mulher que esteja em situação de violência doméstica. Não é preciso ser casada com o agressor.
O que é considerado violência doméstica?
A Lei Maria da Penha prevê não somente a violência física, mas também a sexual (forçar relação ou forçar gravidez, por exemplo), patrimonial (subtrair bens, valores, documentos), moral (calúnia, difamação ou injúria) e psicológica (ridicularizar, chantagear, ameaçar, humilhar, isolar e impedir contato com amigos e familiares, vigiar, controlar, impedir de trabalhar e/ou de estudar, impedir de usar telefone/redes sociais).
Como posso obter a medida protetiva?
A mulher agredida pode se dirigir à Delegacia de Polícia ou Delegacia da Mulher mais próxima. Mas a última atualização na Lei Maria da Penha prevê que as medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência. As medidas serão concedidas a partir do depoimento da mulher perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas. Se precisar de proteção para si ou para os filhos, pode solicitar as medidas protetivas específicas e a própria Delegacia de Polícia encaminha o pedido ao juiz. Se for agredida em casa, a vítima deve sair do local para evitar que o agressor utilize objetos como faca e arma de fogo.
Quais tipos de medidas protetivas possíveis?
Existem várias medidas protetivas possíveis, entre elas:
- Afastamento do agressor do lar
- Proibição da comunicação entre o agressor e a vítima ou seus familiares
- Prestação de alimentos aos filhos menores
- Suspensão do porte de arma de fogo do agressor
- Proibição de contato ou aproximação com a vítima
- Restrição ou suspensão das visitas a dependentes menores
- Restituição de bens indevidamente subtraídos
- Encaminhamento da vítima a programa de proteção.
Quanto tempo dura a medida protetiva?
As medidas protetivas de urgência devem vigorar enquanto existir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da mulher ou de seus dependentes. Não há prazo estabelecido, dependendo de cada caso.
E se ele descumprir?
Se o agressor descumprir alguma das medidas protetivas, a vítima deve comunicar a polícia. Se o descumprimento estiver acontecendo no momento, chame a Brigada Militar, pelo 190. Se já aconteceu, é possível procurar a Polícia Civil, por meio da delegacia ou da Delegacia Online, a Defensoria Pública, o advogado ou diretamente no Juizado da Violência Doméstica.
Descumprimento da medida pode ser punido?
O descumprimento da medida protetiva também é crime. A pena é de três meses a dois anos de prisão. O juiz poderá decretar a prisão preventiva do agressor para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
Onde posso obter mais informações?
Um dos canais que possui diversas informações para as vítimas é a Coordenadoria Estadual da Mulher em situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ. Acesse em gzh.rs/tjvd.