Em contraste com as ruas de Três Passos que já não exibem mais fotos e cartazes do menino Bernardo, morto aos 11 anos, em 2014, no município do noroeste do Estado, um local da cidade mantém a memoria do menino viva e intacta. É a casa de Juçara Petry, 63 anos, conhecida como tia Ju, onde, em uma caixinha amarela, estão guardadas fotos impressas, cartinhas feitas a mão e peças de roupas da criança, que se referia a ela como sua "mãe emprestada". Nesta quarta-feira (22), enquanto ocorre o terceiro dia do novo júri de Leandro Boldrini, acusado de ser o mentor intelectual da morte do próprio filho, a comerciante retirou do armário pertences de Bernardo que ela preserva com carinho.
Ela mostra à reportagem uma das roupas que Bê, como era carinhosamente chamado, mais usava: uma camisa preta do uniforme do colégio. A camisa xadrez azul, uma das preferidas do menino, também está lá, junto a uma branca, a um calção, a meias e a uma sunga listrada, que ele usava na piscina do prédio de tia Ju. As recordações ainda incluem fotos de Bernardo bebê e da mãe dele, Odilaine Uglione, que morreu em 2010.
— Um dia, ele chegou aqui com um bolo de fotos e me disse para guardar, não explicou por quê. Então, vou guardar. Está aqui à disposição da família, se um dia alguém quiser. Senão, vou deixar aqui, são as coisinhas dele — lembra.
Juçara conheceu Bernardo por ser vizinha da família, e o acolheu em casa por repetidas vezes, oferecendo a ele roupas e comida. Era com a tia Ju e com os demais familiares dela que o menino passava a maior parte das datas especiais, como o Dia dos Pais e a Páscoa. Foram os Petry que organizaram uma festa de Primeira Comunhão para a criança, porque o pai e a madrasta, Graciele Ugulini, tinham ido viajar.
— Não preciso olhar para as coisinhas dele para lembrar. A gente lembra quase diariamente. Na verdade, faz muito pouco tempo que não penso tanto nisso. Até esses tempos, eu ainda botava o prato dele na mesa, quando íamos almoçar. Sempre colocava, depois lembrava e guardava. Comecei a me policiar para não fazer mais isso, porque é doloroso — conta.
Dentro da caixa amarela, as roupas limpas e dobradas cuidadosamente também contrastam com o relato que testemunhas deram às autoridades, ao longo dos últimos anos, sobre a forma como Bernardo vivia. Segundo moradores do município, era comum vê-lo andando pelo município sozinho, sujo, com roupas e calçados velhos e pedindo comida.
Em depoimento ao júri, na manhã desta quarta, a psicóloga Ariane Schmitt, que atendeu Bernardo, acrescentou que, em algumas sessões, ele chegava ao consultório dopado, com dificuldade para falar, febril e com quadro que indicava pneumonia.
— Era órfão de pai vivo, órfão de uma família ausente. Isso é mais triste do que a perda, porque a orfandade é sentida no dia a dia, quando você chega com o trabalhinho escolar, você vai contar uma novidade pro papai e pra mamãe e eles estão ocupados — resumiu.
Rotina
Em um depoimento emocionado, Juçara falou ao júri na terça-feira (21). Lembrou que a proximidade entre sua família e Bernardo era tão grande que o menino recebeu uma chave da residência, para que tivesse refúgio sempre que precisasse:
— Era um filho. Um filho que bateu na nossa porta. Tudo que de ele precisava, a gente arrumava, ia atrás. Dentro das nossas limitações, a gente fazia tudo o que podia.
Juçara se emocionou ao lembrar o dia em que deu dinheiro para que o garoto pudesse comer - em uma das últimas vezes que viu a criança viva.
— Acho que era uma quarta-feira, eu estava no trabalho. Ele chegou e disse que não tinha almoçado, e isso já era de tarde. Eu não ia conseguir ir com ele aquela hora, então dei dinheiro para ele comer. Eu disse para comprar algo que alimentasse bem, não lanche. Para comprar suco e não refrigerante. Aí ele foi, comeu e voltou. Ele trouxe o troco para mim. É muito triste lembrar tudo isso — disse Juçara, levando as duas mãos ao rosto.
Na sequência, a sessão precisou ser interrompida por alguns minutos para que ela pudesse se recompor.
Julgamento
Boldrini é acusado de ter sido o mentor intelectual da morte do filho. O réu havia sido condenado, em 2019, a 33 anos e oito meses de prisão em regime fechado, mas a decisão foi anulada em 2021 - fazendo com que ele seja submetido a novo julgamento.
A anulação ocorreu porque o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS) entendeu que o Ministério Público violou o direito do médico de ficar em silêncio no interrogatório daquela sessão.
O novo júri teve início na segunda-feira (20) e a previsão de encerramento é para a quinta-feira (23). Os outros três réus não serão julgados novamente porque suas condenações foram mantidas (confira abaixo a situação de cada um deles).
A situação dos demais réus
- Graciele Ugulini (madrasta) - condenada a 34 anos e sete meses de reclusão em regime inicial fechado, está presa no Presídio Feminino Madre Pelletier com previsão de progressão para o semiaberto em 2026;
- Edelvania Wirganovicz (amiga de Graciele) - condenada a 22 anos e 10 meses de reclusão em regime inicial fechado, cumpre pena no regime semiaberto no Instituto Penal Feminino de Porto Alegre;
- Evandro Wirganovicz (irmão de Edelvania) - condenado a nove anos e seis meses em regime semiaberto e atualmente em liberdade condicional.