Oito policiais foram indiciados por coagir um homem para que ele confessasse a morte de Gabriel Marques Cavalheiro, de 18 anos, em agosto deste ano, em São Gabriel. A falsa confissão surgiu no início de setembro e poderia dar outro rumo à investigação do assassinato do jovem, que tem três policiais presos preventivamente pelo crime.
No dia 3 de setembro, os policiais militares do 2º Batalhão de Polícia de Choque de Santa Maria apresentaram um homem à polícia, dizendo que ele havia confessado ser o verdadeiro autor do assassinato. Logo em seguida, no entanto, ele voltou atrás e relatou ter sido torturado e coagido para fazer a falsa confissão. Com isso, os policiais que o prenderam passaram a ser investigados no caso.
Um inquérito policial militar (IPM), aberto ainda em setembro para investigar os policiais, chegou ao fim em 28 de novembro. Na última quarta-feira (28), o comandante-geral da Brigada Militar concordou e decidiu pelo indiciamento dos oito PMs.
A reportagem procurou a Corregedoria-Geral da BM, que confirmou o indiciamento, mas sem detalhar as informações. A reportagem obteve, por meio de fontes, acesso ao inquérito do caso. O documento tem 16 páginas e conta com depoimentos dos policiais indiciados e do homem preso que, depois, denunciou ser torturado.
O encarregado pela investigação concluiu que não havia provas de tortura ou de agressões, mas aponta ilegalidades na conduta dos policiais. Eles ficaram duas horas e meia dentro da casa do homem, o interrogando, quando o correto seria levá-lo para uma delegacia.
O comandante-geral da Brigada Militar, coronel Claudio dos Santos Feoli, concordou com a conclusão da Corregedoria da BM e indiciou os oito policiais. A BM não divulgou os nomes, mas a RBS TV apurou que são o primeiro-tenente Luiz Antônio Ribeiro Alves, o segundo-sargento Carlos Nataniel Castro Racki, e os soldados Luciano Alonso Scherer, Elisangela da Silveira Morales de Oliveira, Rodolfo Tonetto de Oliveira, Antônio Rafael Coelho Lopes, Pedro Vicente Armanini Rosa e Édipo dos Santos Henrique.
O comandante-geral analisou vídeos da abordagem, feitas pelos próprios policiais e juntadas na investigação. Segundo ele, essas imagens foram entregues fracionadas e, portanto, não mostram toda a ação policial. Em um dos pontos, o coronel afirma que um dos policiais abordou o homem dizendo para ele responder as perguntas sobre a morte de Gabriel "conforme o acordo que eles tinham".
Em outro, um policial teria dito que sabia que o homem era capaz de ter matado Gabriel. Um dos policiais ainda diz que seus colegas presos têm filhos pequenos que vão morrer de fome. Além disso, segundo o inquérito, todos os policiais seguem em defesa dos três já presos, realizando perguntas direcionadas à autoincriminação do interrogado.
O homem, em um dos vídeos juntados à investigação, pede para tomar um tiro para parar o interrogatório. "Ficou evidente ainda, o incômodo e o constrangimento do interrogado, que por diversas vezes pediu até mesmo para levar um tiro, diante da insistência dos policiais militares em prosseguirem no interrogatório, querendo direcionar as respostas", afirma Feoli na conclusão do IPM.
O comandante-geral ainda afirma que a forma com que os policiais procederam o interrogatório não encontra respaldo nas leis e que os policiais violaram os direitos fundamentais previstos na constituição. Os oito policias foram indiciados por dois artigos da lei abuso de autoridade, que citam o constrangimento ao preso mediante ameaça, e a invasão da casa.
A Brigada Militar decidiu pela abertura de Conselho de Justificação contra o tenente e Conselho de Disciplina contra o sargento e outros seis soldados. O procedimento pode resultar na exclusão dos policiais da corporação.
O caso será encaminhado para a Auditoria Militar de Santa Maria, a mesma em que corre o processo militar contra os policiais réus pelo assassinato de Gabriel.
A reportagem tenta contato com a defesa dos policiais.
O que disseram os policias em depoimento
1º Tenente Luiz Antônio Ribeiro Alves
Disse que não conhecia o homem e que apenas tomou conhecimento da situação no dia 3 de setembro. Ao ser questionado sobre a normalidade da ação, afirmou que as 2 horas na residência poderiam ter tido encaminhamento mais rápido. Acrescentou que verificou pessoalmente as condições de saúde do homem antes do encaminhamento para a UPA pela guarnição e nada foi constatado.
Segundo sargento Carlos Nataniel Castro Racki
Quando questionado sobre o motivo da Brigada Militar ter deslocado até o local, respondeu que o soldado Rodolfo, da 2ª seção do batalhão, solicitou apoio para abordagem de um possível foragido e com posse de arma de fogo. No local, reconheceu o homem que tinha a imagem divulgada pela inteligência da BM num grupo de WhatsApp.
Soldado Luciano Alonso Scherer
O soldado trabalha há 21 anos em Santa Maria e por oito atuou no setor de inteligência. Por isso, já conhecia o homem que o acusa junto com os colegas de tortura e agressão. Scherer afirmou que entrou diretamente até o fundo do pátio da casa do homem e ele estava conversando com o Sgt. Racki no interior da residência. O sargento afirmou ainda que as guarnições foram acusadas de violência na abordagem porque o homem se arrependeu de ter falado sobre o caso de São Gabriel e situações envolvendo traficantes de drogas na região.
Soldado Elisangela da Silveira Morales de Oliveira
Afirmou que sua percepção foi que a condição de saúde mental do homem parecia sem alteração e que ele não estaria alcoolizado ou drogado no momento das declarações. Quando perguntada se tinha conhecimento dos três policiais militares presos pelo crime, disse que sabia, mas que não possuía nenhuma relação ou amizade.
Soldado Rodolfo Tonetto de Oliveira
Afirmou que acredita que o homem tenha sido orientado no presídio para dizer que foi agredido, uma vez que já tinha outras prisões. Disse ainda que não o conhecia pessoalmente, mas já tinha ouvido falar no nome em razão dos crimes praticados na região de Santa Maria. Enfatizou que acompanhou toda a ocorrência.
Soldado Antônio Rafael Coelho Lopes
Afirmou que o homem apresentava ter ingerido bebida alcoólica, mas que, no momento da abordagem, não estava embriagado. Sobre o motivo dele ter acusado as guarnições de lesão corporal, ameaça e tortura durante a abordagem, respondeu que talvez por ter se arrependido das declarações realizadas e para obter algum benefício na audiência de custódia.
Soldado Pedro Vicente Armanini Rosa
Negou ter relação ou conhecimento com o homem ou com policias presos, mas disse que conhece colegas que são clientes da advogada dos PMs. Sobre o tempo em que as guarnições permaneceram no interior da residência com o abordado, afirmou que entende que o tempo decorrido foi o necessário para o andamento da ocorrência, que foi solicitada orientação ao escalão superior pelo Sgt. Racki e que a orientação foi de que fosse apresentada a ocorrência na delegacia de polícia.
Soldado Édipo dos Santos Henrique
O soldado afirmou em depoimento que não conhecia o homem em questão, não saberia dizer se estava alcoolizado ou drogado, pois chegou como apoio na ocorrência, não sendo o primeiro. Sobre o motivo do homem ter acusado as guarnições de lesão corporal, ameaça e tortura durante a abordagem, respondeu que talvez por arrependimento pelas declarações ou para receber algum benefício na audiência de custódia. Ao falar se tinha relação de amizade ou conhecia os três PMS presos, disse que vários integrantes do batalhão são clientes da advogada que representa partes dos policiais militares presos.
Relembre o caso
Natural de Guaíba, Gabriel — que tinha se mudado havia apenas 15 dias — foi abordado no começo da madrugada de 13 de agosto, no bairro Independência, em São Gabriel. Após ser levado na viatura pelos três PMs, não foi mais visto. Uma semana depois, o corpo dele foi encontrado a dois quilômetros de onde ocorreu a abordagem, dentro de um açude.
Na ocorrência, os policiais haviam registrado que revistaram Gabriel e o liberaram. Com o sumiço, foram ouvidos em inquérito policial militar e admitiram ter levado o jovem para a localidade de Lava Pé. Alegando inocência, as defesas disseram que foi ele quem pediu para ser deixado naquele local, pois estaria procurando a casa de familiares.
No dia 23 de agosto, a juíza Juliana Neves Capiotti, da Vara Criminal de São Gabriel, decretou a prisão preventiva do trio. Os policiais — os soldados Raul Veras Pedroso e Cléber Renato Ramos de Lima e o segundo-sargento Arleu Júnior Cardoso Jacobsen — estão presos desde 19 de agosto por determinação da Justiça Militar. O decreto ocorreu em função de irregularidades na condução da ocorrência.