O trabalho que busca refazer os últimos passos de Gabriel Marques Cavalheiro, 18 anos, que morreu em agosto, após uma abordagem da Brigada Militar em São Gabriel, município da Fronteira Oeste, durou cerca de 14 horas. A chamada reprodução simulada começou na tarde dessa segunda-feira (21), por volta das 14h, e seguiu até cerca de 4h desta terça (22).
A reconstituição é feita por peritas do Instituto-Geral de Perícias (IGP) e serve para confrontar as versões apresentadas por testemunhas do caso e verificar se são plausíveis. Os três PMs responsáveis pela abordagem participaram da perícia. O trio está preso desde 19 de agosto, no Presídio Militar de Porto Alegre.
Conforme Bárbara Cavedon, uma das peritas criminais que participou do trabalho, houve diferença nos relatos das testemunhas.
— As versões apresentadas pelos investigados foram bastantes semelhantes entre si. Das testemunhas, temos versões distintas — afirmou a perita — Temos elementos bastante interessantes para serem analisados, tanto do que teria causado a morte quanto da dinâmica dos fatos — complementou.
Pela complexidade do caso, o IGP não soube informar em quanto tempo o laudo ficará pronto. Agora, o Instituto fará uma análise técnica das versões apresentadas pelos envolvidos.
Os pais de Gabriel acompanharam a reconstituição. À reportagem, alegaram que os policiais agiram como atores e não falaram a verdade. Eles ainda pediram justiça e reforçaram que o jovem não conhecia a comunidade rural onde foi encontrado.
A primeira etapa foi realizada na delegacia do município. O espaço foi cedido para que os peritos pudessem ouvir as cinco testemunhas e os três PMs envolvidos, os soldados Raul Veras Pedroso e Cléber Renato Ramos de Lima, e o segundo-sargento Arleu Júnior Cardoso Jacobsen. O trio, que chegou ao local por volta das 16h, responde pelo crime tanto na Justiça Estadual comum quanto na Militar.
Individualmente, todos relataram ao IGP o que viram na noite de 12 de agosto, quando Gabriel foi abordado. A fase de tomada de depoimentos se encerrou por volta das 21h.
Depois começou a segunda etapa, quando os participantes vão até os locais que indicaram, para demonstrar como e onde se deram os acontecimentos narrados, o que também ocorre de forma individual. As testemunhas levaram os peritos para a rua em que Gabriel foi abordado, no bairro Independência, e também para a localidade de Lava Pé, onde o corpo do jovem foi encontrado.
Para a reprodução do caso, são utilizados um cassetete, um par de algemas e uma viatura da Brigada Militar com características semelhantes ao veículo usado pelos policias no dia da abordagem. Para compor as cenas narradas, policiais civis se posicionam nos locais indicados, tanto da vítima quanto de testemunhas e suspeitos. A Brigada Militar fez o isolamento dessas áreas para que o trabalho fosse realizado sem interrupções.
A reprodução foi acompanhada pelo pai da vítima, Anderson da Silva Cavalheiro, 40 anos, e pela advogada dos familiares, Rejane Igisk Lopes. A família, que mora em Guaíba, se deslocou mais uma vez até o município para a reconstituição.
— Estamos reunindo forças para encarar tudo isso, não é fácil ficar frente a frente com os policiais que abordaram meu filho. A gente vê que, mesmo presos, eles seguem recebendo o carinho das esposas, de amigos, tomam chimarrão em audiência, como se não tivessem feito nada. Eles têm uma liberdade que meu filho não teve. É uma aflição muito grande — lamenta Anderson.
O procedimento é considerado complexo pelo IGP, uma vez que requer o estudo de todos os depoimentos e laudos elaborados até agora, que serão confrontados com o que é dito na reconstituição. A reprodução simulada, pedida pela Polícia Civil, é feita por duas peritas criminais e um fotógrafo criminalístico do instituto. A equipe faz anotações e fotos ao longo do procedimento. Depois, em um laudo pericial, darão sua análise técnica sobre o material colhido. Esse documento será anexado ao processo que corre na Justiça.
A reconstituição tem caráter informativo e não serve nem para ajudar a acusação nem a defesa. Vamos verificar se o resultado dessa etapa irá beneficiar alguma das partes.
EDUARDO SANDIM BENITES
Delegado regional
De acordo com o delegado regional que atende o município e acompanhou a reconstituição, Luís Eduardo Sandim Benites, a perícia servirá para trazer mais elementos ao caso.
— Esse trabalho tem como objetivo fazer com que os fatos vinculados na investigação possam ser materializados com uma perícia técnica, feita com base na versão das testemunhas. A reconstituição tem caráter informativo e não serve nem para ajudar a acusação nem a defesa. Vamos verificar se o resultado dessa etapa irá beneficiar alguma das partes — explica Benites.
A reconstituição havia sido marcada inicialmente para 8 de novembro, mas foi suspensa pela Justiça a pedido de um dos advogados dos réus.
O desaparecimento
Gabriel desapareceu no dia 12 de agosto, quando foi visto pela última vez sendo colocado dentro de uma viatura da BM. Ele havia sido abordado pouco antes no bairro Independência, em São Gabriel. O corpo do jovem foi encontrado dias depois, dentro de um açude na localidade de Lava Pé, a cerca de dois quilômetros do local da abordagem.
O laudo de necropsia do Instituto-Geral de Perícias apontou que Gabriel morreu por hemorragia interna causada por uma agressão na coluna cervical. Ele também tinha um hematoma na cabeça.
Segundo a investigação, durante a abordagem, Gabriel teria sido agredido com um tapa, depois caiu e bateu com a cabeça num paralelepípedo. Na sequência, teria sido agredido com um cassetete e posto contra a vontade na viatura. A apuração concluiu que o crime foi motivado porque Gabriel estaria embriagado e teria se dirigido a um policial, chamando-o de fraco.
Segundo a família, Gabriel estava no município em agosto porque iria se apresentar para o serviço militar obrigatório em um quartel. Morador de Guaíba, ele estava em São Gabriel havia 15 dias e queria servir na cidade por gostar e querer ficar perto do campo. Como alguns familiares moram ali, ele também poderia contar com apoio de parentes. A família descreve o jovem como alguém tranquilo, educado e apaixonado por cavalos.
PMs respondem em duas esferas
Os três policiais militares responsáveis pela abordagem respondem pelo caso em duas esferas diferentes. Na Justiça comum, que tem competência para julgar casos de crime doloso contra a vida de civis, e na Militar, que julga crimes praticados por militares em serviço.
Na Justiça comum, os três são réus por homicídio doloso triplamente qualificado — motivo fútil, meio cruel e recurso que dificultou a defesa da vítima.
Segundo o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS), o processo encontra-se em fase de instrução. Uma audiência foi marcada para o dia 7 de dezembro. No processo, primeiro são ouvidas as testemunhas. Os acusados serão os últimos a prestarem depoimento.
"A fase de instrução processual é longa, pois é nela que são produzidas provas, tanto de uma parte quanto de outra, que vão sustentar suas teses. Portanto, por enquanto, não é possível se prever uma data para julgamento na Justiça Estadual", disse o TJ-RS em nota.
Na denúncia do Ministério Público ao TJ-RS, a promotora de Justiça Lisiane Villagrande Veríssimo da Fonseca descreve que os policiais militares em serviço, durante patrulhamento ostensivo, abordaram a vítima "que foi algemada e brutalmente agredida com golpes de cassetete na região cervical".
Na sequência, conforme o MP, os denunciados colocaram o jovem no interior da viatura e se deslocaram até a localidade de Lava Pé, local em que ocultaram o corpo de Gabriel. Essa denúncia foi feita com base no indiciamento da Polícia Civil.
Na Justiça Militar, os PMs respondem por ocultação de cadáver e falsidade ideológica — em razão de informações falsas que teriam sido inseridas no boletim de ocorrência. Nesta esfera, o processo também está em fase de instrução. No dia 1º, o pai do jovem prestou depoimento no caso. A fala durou cerca de duas horas e 30 minutos, e ocorreu no prédio da Justiça Militar, em Porto Alegre. Na mesma esfera, os três PMs foram ouvidos no dia 14, em Santa Maria. Também não há previsão de data para o julgamento na Justiça Militar.
Essa denúncia foi feita pelo promotor de Justiça Diego Corrêa de Barros, do MP, que tem atribuições junto à Justiça Militar. Segundo ele, após a morte da vítima, o trio de policiais ocultou o corpo de Gabriel, levando-o até o interior do município e escondendo-o dentro de um açude.
Além disso, para o MP, os acusados fizeram constar no boletim de ocorrência declaração falsa de que "a guarnição abordou o Sr. Gabriel, que consultado estava sem novidades, sendo então orientado e liberado", quando, na verdade, havia sido agredido, algemado, preso e posto no interior da viatura pelos denunciados, diz a acusação.
Contrapontos
O que diz a defesa do segundo-sargento Arleu Júnior Cardoso Jacobsen
"A defesa entende que esse é um importante passo para demonstração da verdade dos fatos. Estamos confiantes que essa prova será elucidativa na demonstração da inocência do nosso constituinte", disse o advogado Ivandro Bitencourt Feijó, em nota.
O que diz a defesa dos soldados Raul Veras Pedroso e Cléber Renato Ramos de Lima
"Os soldados vão colaborar participando da reprodução assistida ambos são inocentes e no transcorrer do processo na instrução processual vão comprovar que são totalmente inocentes das acusações", disse o advogado Jean Severo, em nota.