Há um ano, depois de ficar cinco dias acampada em um galpão improvisado acompanhando o trabalho do Corpo de Bombeiros nas buscas pelo sargento Lúcio Ubirajara de Freitas Munhós, 51 anos, Mariana Munhós recebeu a notícia de que o pai não voltaria para casa. Junto do tenente Deroci de Almeida da Costa, 46, ele morreu enquanto tentava conter as chamas que destruíram o prédio da Secretaria da Segurança Pública (SSP), em Porto Alegre, no incêndio que iniciou na noite de 14 de julho de 2021.
Desde então, a família diz que tenta lidar com a perda do homem que animava a casa onde moravam, em Viamão, na Região Metropolitana, com músicas tradicionalistas no volume máximo e o chimarrão pronto.
Apaixonado pela corporação, Munhós era o responsável por mimar os dois cães da família e pelo cardápio da casa. Um ano depois, a jovem de 22 anos conta que a falta do pai se manifesta diariamente.
— É um eterno sentimento de embate entre a razão de entender que isso aconteceu e a emoção de não aceitar. Até hoje, a gente recebe mensagens de amigos, de colegas. Alguém que lembra dele, que acha uma foto antiga e vem nos mostrar. É uma forma de trazer ele pra perto da gente de novo. Também até hoje perguntam como estamos, sempre se preocupam. A corporação era a família dele, e seguem se preocupando conosco — diz Mariana.
A filha conta que, no inverno, as lembranças ficam ainda mais frequentes. Nos dias frios, era o tradicional sopão que Munhós preparava que ajudava a aquecer a família.
— Nos domingos, ele acordava, ligava a vaneira dele a todo volume, fazia um chimarrão e depois começava a cozinhar. Esse inverno tem sido bem difícil, a gente sente muita falta.
Natural de Lavras do Sul, no sul do Estado, Munhós ingressou nos bombeiros em 1990, na Capital. Na maior parte do tempo, trabalhou no 1º batalhão, no bairro Praia de Belas. Ultimamente, estava na Divisão de Logística e Patrimônio do Corpo de Bombeiros, junto ao Comando-Geral. Em 2020, o bombeiro recebeu a medalha de ouro de serviços prestados, por sua trajetória na corporação.
Segundo a família, Munhós já poderia ter ingressado na reserva, mas a ideia de aposentar a farda ainda não passava pela cabeça do sargento. Tanto que na noite da morte, ele saiu de casa para ajudar no incêndio mesmo estando folga.
Seguindo a profissão
Mariana conta que o pai a incentivava a seguir na profissão. Mas a jovem, que está há três semestres de se formar em Enfermagem, diz que não via esse caminho como alternativa. Até passar dias observando o trabalho de buscas a Munhós e Almeida, nos escombros que sobraram do prédio da SSP.
Foram cerca de cinco dias em que a filha e a esposa do sargento ficaram acomodadas em uma estrutura com quarto e banheiro em galpões improvisados pelas equipes, para que pudessem acompanhar de perto as buscas. Em meio a esperança de encontrar o pai com vida, Mariana diz que entendeu as palavras de Munhós sobre a profissão.
— Depois dos dias que a gente ficou acampada lá, eu entendi o motivo do amor dele pelo que fazia. Tinha um cuidado entre eles e com a gente. Não cessavam as buscas. Alguns paravam por cinco minutos, comiam algumas rapaduras e logo voltavam. Ali, entendi tudo que ele falava sobre os bombeiros. É difícil explicar, só estando lá. Aquela era a família dele. E agora entrar na corporação é minha prioridade — diz.
Também inspirado pelo trabalho do sargento, o cunhado de Munhós ingressou na corporação, há 20 anos. Ele foi um dos colegas que trabalhou nas buscas as duas vítimas em 2021.
A jovem que pretende se tornar integrante da corporação, seguindo os passos do pai e do tio, destaca a falta de efetivo nos batalhões e a espera pelo chamamento por parte de aprovados em concursos públicos como problemas que merecem atenção por parte do governo gaúcho.
Em homenagem aos dois homens, uma missa de um ano foi marcada pelo Corpo de Bombeiros para o dia 14, às 16 horas, na Catedral Metropolitana, em Porto Alegre.
GZH entrou em contato com familiares do tenente Almeida, que preferiram não se manifestar sobre o falecimento.
Famílias entram na Justiça
Segundo as famílias dos dois bombeiros mortos, há pendências em relação às pensões a que têm direito parentes de servidores da segurança que perdem a vida durante o trabalho. Conforme o advogado Anderlon Junqueira, que atende o grupo e integra a Associação dos Bombeiros do Estado (Abergs), duas ações foram ajuizadas.
— O Estado fazia o pagamento das pensões com base em um cálculo que entendia ser correto, mas que estava em desacordo com a lei. Então ingressamos na Justiça para garantir que os familiares recebam os valores corretos, conforme é de direito deles. Infelizmente, há muitos casos de famílias que não recebem o subsídio adequado previsto em lei.
GZH entrou em contato com a Procuradoria-Geral do Estado (PGE-RS), que se manifestou por meio de nota:
"Em relação ao pensionamento envolvendo os dependentes dos militares Deroci de Almeida da Costa e Lúcio Ubirajara de Freitas Munhós, destaca-se que ambas as famílias vêm recebendo a pensão infortúnia, indenizatória.
Em relação às ações ajuizadas, o Parecer nº 19.283/2022, da PGE, já confere a possibilidade de cumulação da pensão de natureza indenizatória com a pensão previdenciária. Entretanto, outras questões, como a incidência do Imposto de Renda no benefício, seguem tratadas em juízo."
Além disso, em setembro do ano passado, o governo do Estado publicou no Diário Oficial a promoção póstuma dos dois bombeiros, benefício previsto a servidores que faleceram em serviço e que amplia as pensões.
Conforme o advogado, a publicação de Munhós está incorreta no documento — invés de ter sido promovido a 1º sargento, ele aparece como 2º sargento, cargo que já ocupava em vida, segundo Junqueira. O defensor entrou com pedido no departamento administrativo do corpo de Bombeiros para que a publicação seja refeita.
A SSP afirmou que a solicitação "passará por todas as instâncias técnicas para avaliação". A pasta se manifestou por meio de nota. Confira:
"Os bombeiros 1º tenente Deroci de Almeida da Costa e 2º sargento Lúcio Ubirajara de Freitas Munhós foram promovidos extraordinariamente "post mortem" em ato no Diário Oficial de 14 de setembro de 2021, a contar de 14 julho do mesmo ano, data do sinistro na Secretaria da Segurança Pública. Essa medida implicou em acréscimo pecuniário nos respectivos salários dos militares que passaram a ser recebidos pelas famílias.
Também foi paga, ainda em 2021, parcela única de indenização no valor de 3.000 UPF's (R$ 21,1581), o que resulta em R$ 63.474,30 para cada família.
Em 25 de abril de 2022, foi publicado novo ato no Diário Oficial do Estado, concedendo às famílias de ambos os bombeiros pensão especial, com parcela adicional correspondente à diferença entre piso e teto da carreira.
No último dia 6 de julho, advogado da família do sargento Munhós ingressou com solicitação administrativa requerendo revisão quanto à promoção concedida ao militar. Essa alteração acrescentaria uma diferença de cerca de R$ 300,00 no vencimento atualmente percebido pela família. O processo é recente e ainda passará por todas as instâncias técnicas para avaliação."