O mapa dos feminicídios, estudo realizado pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul na tentativa de entender os fatores que permeiam o mais alto grau da violência doméstica, traz dados alarmantes. Um deles mostra que no ano passado esse tipo de crime deixou 129 órfãos no Estado. Foram 96 mulheres assassinadas em contexto de gênero – 63 delas eram mães.
Espécie de radiografia dos feminicídios, a análise busca traçar tanto o perfil das vítimas como dos autores. O detalhamento sobre como a violência atinge os filhos demonstra que, dessas mulheres, 22 tinham filhos com autores do crime. Além da mãe, 15 perderam o pai, nos casos em que o assassino tirou a própria vida. O levantamento aponta a idade dos órfãos: 56 eram menores de 18 anos, sendo 23 de até 12 anos.
Em janeiro, Tamires Pires Pedroso, 33 anos, foi encontrada morta a tiros em Canoas, na Região Metropolitana. No mesmo apartamento, o namorado, um policial militar com quem mantinha relacionamento há 11 meses, foi encontrado sem vida, com um disparo. A investigação da Polícia Civil concluiu que se tratou de feminicídio seguido de suicídio. Descrita como responsável, alegre e trabalhadora, a manicure tinha uma filha de oito anos.
Não são raras as vezes em que policiais chegam ao local dos feminicídios e deparam com essa situação. Crianças que, além de perderem a mãe ou os pais, presenciaram o crime. Realidade trágica que a delegada Jeiselaure Rocha, titular da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher (Dipam) no Estado, conhece bem.
– Quando uma mulher morre, numa violência cometida por alguém tão próximo, desestrutura toda a família. É preciso ter esse olhar para o todo. É um tipo de violência muito silenciada, que impacta em toda a sociedade. Inclusive nas crianças que crescem nesse ambiente. São vítimas secundárias e desenvolvem traumas, que, se não tratados, serão levados para a vida adulta – alerta a delegada.
Em junho do ano passado, uma criança e um adolescente presenciaram outro crime bárbaro na zona leste da Capital. Na Lomba do Pinheiro, uma adolescente de 17 anos foi morta a tiros, assim como a mãe e a tia. O autor, um jovem de 21 anos, tirou a própria vida após balear as três. O mapa mostra que quatro mulheres morreram em 2021 no Estado por estarem junto de vítimas de feminicídio no momento do crime.
Silêncio das vítimas
Outro cenário bastante comum nos locais de crimes, segundo a delegada, é aquele no qual familiares e vizinhos relatam sequências de violências sofridas pela vítima, mas sem registros. A maior parte das mulheres, segundo o mapa, nunca havia procurado a polícia para registrar ocorrência contra o agressor (67%). A imensa maioria não possuía medida protetiva de urgência quando foi morta (89,6%). Em 81% dos crimes, o autor foi o companheiro ou o ex.
– Elas só se tornam visíveis para o nosso sistema quando viram vítimas de feminicídio, único crime sem subnotificação. Precisamos que todos que percebem a violência ajudem essa mulher a passar por isso. Ela não está sozinha. O nosso trabalho é levar informação para que essas mulheres denunciem o quanto antes, venham procurar a polícia – diz a delegada Jeiselaure.
Precisamos que todos que percebem a violência ajudem essa mulher a passar por isso. Ela não está sozinha. O nosso trabalho é levar informação para que essas mulheres denunciem o quanto antes, venham procurar a polícia
JEISELAURE ROCHA
Delegada titular da Dipam
Esta é a terceira edição do mapa dos feminicídios, que tem como foco entender os gargalos que impedem que se evite esse tipo de crime. Os outros dois estudos ajudaram a construir algumas medidas de prevenção. Uma delas foi o projeto Salas das Margaridas, que levou à implantação em plantões de delegacias de espaços para atendimento dessas mulheres de forma mais humanizada.
Neste ano, a 50ª sala foi inaugurada em Capão da Canoa. Os outros mapas já indicavam a necessidade de haver atendimento especializado 24 horas por dia, algo que novamente aparece no estudo atual. Em 2021, os feminicídios cresceram 20% no Estado, já que tinham sido 80 registros no ano anterior. Dos crimes, quase metade (48%) aconteceu em fins de semana. A maioria das vítimas foi assassinada dentro de casa (74%).
– Os mapas nos ajudaram a criar as salas e também o WhatsApp (para denúncias de violência doméstica). Se a mulher não denuncia, alguém tem que denunciar. Estamos no terceiro mapa e continua aparecendo a necessidade da denúncia como principal denominador que faz diferença na vida da mulher – afirma a chefe da Polícia Civil, delegada Nadine Anflor.
Outra iniciativa que tenta reduzir a violência é a Patrulha Maria da Penha. São equipes da Brigada Militar (BM) especializadas em fiscalizar o cumprimento de medidas protetivas em 114 municípios. Das 96 vítimas de feminicídio em 2021, 10 tinham medidas protetivas quando foram assassinadas. Ou seja, a cada 9,6 mulheres mortas, uma estava com a proteção judicial.
– Em qualquer caso de descumprimento, seja por contato, por mensagem, ligações, é essencial que a mulher volte na delegacia e registre nova ocorrência. Assim, vamos poder representar até pela prisão dele e efetivamente alcançar esses casos que são mais graves. A medida protetiva é um meio eficaz – ressalta a delegada Jeiselaure.
Detalhes sobre a mulher e o agressor
Outras características da própria vítima são detalhadas no estudo, como o fato de que maioria é branca, tem entre 18 e 55 anos e cursou somente o Ensino Fundamental. Entre os autores, o perfil é semelhante, mas somam-se outros aspectos, como o fato de que 64,5% tinham antecedentes policiais e 28% tinham algum registro por violência doméstica. Dos agressores, 60% estão presos e 31% cometeram suicídio.
Em Lajeado, no Vale do Taquari, um projeto piloto está sendo implantado, contemplando mais um olhar para a violência doméstica. Por meio dele, agentes da Delegacia da Mulher buscarão se aproximar também do agressor. É uma tentativa, segundo a chefe da Polícia Civil, de evitar desfechos mais graves. Caso a iniciativa funcione, deve ser expandida.
– Queremos fazer uma espécie de mediação para evitar que novos conflitos aconteçam. Orientar o que ele pode ou não em relação aos filhos, ao patrimônio. A ideia é aproximá-lo da polícia para que não reincida. Esse número de suicídios indica que temos homens que também estão pedindo socorro. Se a polícia puder fazer essa mediação, vai estar protegendo as mulheres e as crianças também para que não se tornem filhos do feminicídio, o que é algo extremamente triste – diz a delegada Nadine.
Por região
A análise aponta ainda como foi a distribuição geográfica dos feminicídios no Estado. A Região Metropolitana concentra quase um terço dos crimes, com 30 vítimas. No total, foram 59 municípios que tiveram algum caso. Porto Alegre teve o maior número de assassinatos de mulheres nesse contexto, com nove registros - em comparação com 2020, teve redução de 22%. Na sequência, vêm as cidades de Canoas, Santa Rosa, São Borja e Uruguaiana, com quatro em cada.
Onde pedir ajuda
Brigada Militar
- Telefone - 190
- Horário - 24 horas
- Serviço - atende emergências envolvendo violência doméstica em todos os municípios. Para as vítimas que já possuem medida protetiva, há a Patrulha Maria da Penha da BM, que fiscaliza o cumprimento. Patrulheiros fazem visitas periódicas à mulher e mantêm contato por telefone.
Polícia Civil
- Endereço - Delegacia da Mulher de Porto Alegre (Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia), no bairro Azenha. As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias. Há 23 DPs especializadas no Estado
- Telefone - (51) 3288-2173, 3288-2327, 3288-2172 ou 197 (emergências)
- Horário - 24 horas
- Serviço - registra ocorrências envolvendo violência contra mulheres, investiga os casos, pode pedir a prisão do agressor, solicita medida protetiva para a vítima e encaminha para a rede de atendimento (abrigamentos, centros de referência, perícias, Defensoria Pública etc.), entre outros serviços.