“Respeito e proteção” são palavras estampadas na parede da mais recente Sala das Margaridas pela Polícia Civil e as premissas desse projeto que tenta fortalecer o combate à violência doméstica no Estado. O espaço de acolhimento para vítimas e seus filhos está localizado na nova Delegacia de Polícia de Capão da Canoa, no Litoral Norte. Desde que a ideia de qualificar o atendimento das mulheres nos plantões das delegacias, de forma humanizada e com mais privacidade, começou a ser colocada em prática no Rio Grande do Sul, em 2019, a iniciativa se alastrou e chega agora a 50 salas.
Além de ser separada do plantão onde são registradas as demais ocorrências, num ambiente reservado, a sala é mais acolhedora, desde os móveis usados e a decoração até a preparação dos agentes, que são capacitados para atender as vítimas de violência e realizar os encaminhamentos necessários. Em 2021, 600 policiais civis receberam esse treinamento. Mesmo nas cidades em que há Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, são os plantões que recebem e registram os casos fora do horário comercial. Por isso, a iniciativa é voltada especialmente para esses locais.
— As vítimas, quando vão efetuar o registro, normalmente estão bastante fragilizadas e emotivas, sendo necessárias diversas pausas durante depoimento para que consigam relatar as violências. Quando ela está ali, dividindo espaço com outros, tende a ficar constrangida. Essa vítima precisa ser acolhida, bem recebida e se sentir confiante — explica a delegada Sabrina Dóris Teixeira, que responde de forma interina pela Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher (Dipam) no Estado.
Na sala inaugurada em Capão da Canoa, além de todos os itens necessários para o registro da ocorrência, oitiva do depoimento da mulher e solicitação de medidas protetivas de urgência, por exemplo, há ainda um cantinho especial. O espaço colorido está recheado de brinquedos de diferentes tipos, já que os filhos de mulheres vítimas de violência doméstica também estão inseridos nesse contexto. A intenção é permitir que essas crianças, durante o atendimento às mães, permaneçam entretidas e passem pelo momento de forma menos traumática.
“Pequenas delegacias da mulher”
O projeto da Sala das Margaridas surgiu a partir de demanda que era recebida repetidas vezes pela primeira mulher a chefiar a Polícia Civil. Muitos municípios queriam ter uma Delegacia da Mulher (há 23 no RS). Por uma semana, a delegada Nadine Anflor refletiu sobre que medida poderia adotar para atender aos pedidos, num cenário possível.
— Não seria viável a abertura de novas delegacias. Me dei conta de que eu precisava sensibilizar os plantões, que são aqueles que recebem essas mulheres 24 horas por dia. Precisava mostrar que essa mulher precisa de atendimento diferenciado. E, para isso, precisei tirar o registro do mesmo balcão das outras. Tirando o plantonista e colocando num espaço diferente, faço com que ele respire e se dê conta de que é outra ocorrência, diferente das demais. Ganha a polícia, ganha essa mulher e ganha a sociedade. Passamos a ter pequenas delegacias da mulher em vários municípios — diz a delegada.
O projeto determinava que as salas fossem implantadas nas 44 Delegacias de Polícia de Pronto Atendimento (DPPAs) do Estado. Mas, desde então, a iniciativa ultrapassou a meta e mais municípios demonstraram interesse em ter uma Sala das Margaridas. No caso de Capão da Canoa, além da demanda pelos casos registrados, o fato de a cidade ser referência para muitos veranistas no Litoral Norte pesou para a implantação.
— A Sala das Margaridas é uma forma mais moderna, ágil, e menos onerosa. A minha determinação é de que fossem 44 salas. Fico extremamente feliz que agentes tenham se engajado e nosso projeto tenha ido além. Agora depende muito da iniciativa de cada um, de querer se organizar. Acho que é uma forma de instigar a criação de uma rede de apoio para mulheres nessas cidades — afirma Nadine.
Rede fortalecida
Em Santiago, na Região das Missões, foi implantada a primeira Sala das Margaridas do Estado, em agosto de 2019. Naquele ano, a então titular da DPPA do município, delegada Elisandra Mattoso Batista (atualmente na 1ª Delegacia de São Borja) viajou a Porto Alegre para um seminário. Ali, conheceu a iniciativa, que começava a ser fomentada dentro da Polícia Civil.
— A ideia me brilhou os olhos. Queria trabalhar em algo voltado ao enfrentamento da violência doméstica, e vi como oportunidade de dar mais ênfase à prevenção — recorda.
De volta a Santiago, começou a buscar parcerias com a comunidade para colocar a ideia em prática. Uma das orientações do projeto é justamente buscar o apoio dentro do município, para criar esse senso de rede. Com ajuda de instituições locais, associações e moradores, passou a montar tudo para implantar a primeira Sala das Margaridas do RS, num projeto piloto. Logo, chegaram doações de mobiliário, uma sala foi decorada e recebeu adesivos.
— Foi um trabalho com soma de esforços, da Polícia Civil e da comunidade de Santiago. Esse projeto melhorou a nossa relação com as vítimas — diz a delegada.
Além do atendimento no momento do registro de ocorrência, a maior articulação das delegacias com a rede de proteção é outro fator apontado como um ponto positivo da iniciativa. As salas muitas vezes contam com atendimento psicológico e suporte de assistente social, e também fazem encaminhamentos para outras áreas da rede de proteção à mulher.
— Esse é um trabalho multidisciplinar. Antes eram vários órgãos trabalhando separados, e, agora, atuam de forma integrada, articulada. Passamos a conhecer as vítimas, entender o contexto, saber os fatores que estão por trás dessa violência, como muitas vezes o alcoolismo e a drogadição. E conseguimos fazer os encaminhamentos para tratar a causa do problema, e não só a consequência. É um trabalho a muitas mãos — afirma Elisandra.
Apenas dois meses depois da inauguração nas Missões, outra sala foi instalada, em Montenegro. E, depois disso, novas unidades passaram a ser criadas em diferentes pontos do Estado (confira o mapa abaixo).
Aumento de feminicídios
A Sala das Margaridas faz parte de série de estratégias que tentam frear a violência doméstica e evitar que se chegue ao desfecho mais trágico, que são os feminicídios. Ainda assim, diferentemente dos demais indicadores, em 2021 o Rio Grande do Sul teve 97 mulheres assassinadas, contra 80 registros em 2020 - elevação de 21,2%.
O início de 2022 também trouxe novos casos que evidenciam esse tipo de violência contra a mulher. Em Passo Fundo, no Norte, Thairine de Oliveira, 31 anos, e sua mãe, Isabel Cristina Muniz de Oliveira, 63, foram mortas a tiros em janeiro, e o principal suspeito é o ex-companheiro da jovem. Em Canoas, na Região Metropolitana, outra mulher foi assassinada a tiros em 7 de fevereiro. O ex-namorado, que já estava com mandado de prisão decretado por ter descumprido medida protetiva, é procurado pelo crime.
— A Polícia Civil está atenta a esses feminicídios de mulheres com medida protetiva, e cada vez mais atuante contra os casos de descumprimento de medidas. Mas é essencial reforçar que, ao mínimo descumprimento, a mulher deve registrar ocorrência para que possamos tomar providências — diz a delegada Sabrina Dóris Teixeira, interina na Dipam.
Embora nesses casos recentes as mulheres tivessem medida protetiva em vigor, a maioria das vítimas de feminicídio no Estado não se encaixa no mesmo perfil. Em 2021, mais de 80% das que foram assassinadas não contavam com a medida. A subnotificação, por sinal, é um dos principais desafios no enfrentamento à violência. O tempo médio estimado pelas autoridades para uma mulher buscar ajuda, e romper o silêncio, é de 10 anos.
— É preciso estimular que as mulheres se encorajem. O registro é o primeiro passo. Claro que também é preciso toda uma rede, com espaços de acolhimento. Quanto melhor for estruturada a rede no município, mais êxito teremos em romper esse ciclo da violência — analisa a delegada Sabrina.
Detalhe GZH
O nome Sala das Margaridas faz alusão à flor, que normalmente está na decoração desses espaços. A espécie é conhecida pela brincadeira “bem-me-quer, mal-me-quer”, neste caso comparada com a situação em que vivem vítimas de violência doméstica, que, por vezes, decidem buscar ajuda. Mas, em outras situações, dentro do contexto do ciclo da violência, optam por voltar atrás e retomar o relacionamento.