Mesmo com queda de denúncias, em meio à pandemia e ao fechamento de escolas, o Rio Grande do Sul teve, no ano passado, 1.352 registros de boletins de ocorrência pelo crime de maus-tratos em que as vítimas possuíam entre zero e 17 anos. O número representa um caso reportado à polícia a cada seis horas.
A maioria das ocorrências (1.010) envolve vítimas de até 12 anos. Os dados (veja abaixo) são da Secretaria da Segurança Pública (SSP).
A queda de notificações no último ano foi de 21% na comparação com 2019, mas quem estuda o assunto não observa motivos para comemorar. Pelo contrário: especialistas acreditam que, com as restrições impostas pelo coronavírus, as crianças vítimas passaram mais tempo perto dos agressores, já que a maioria das violações ocorre dentro de casa.
Diretora da Divisão Especial da Criança e do Adolescente (Deca), a delegada Eliana Lopes explica que é enquadrado no crime de maus-tratos casos de lesão em crianças, submissão a algum constrangimento, falta de assistência em saúde, alimentação ou vestuário, entre outros, desde que promovido por alguém que está na condição de responsável pelo menor.
— Basicamente é infringir naquela criança um sofrimento que atinja a integridade física ou psicológica dela. Infelizmente, o autor do delito está no meio familiar, no ambiente das pessoas que convivem e deveriam ser a fortaleza dessas crianças — detalha.
Outro dado analisado por GZH também preocupa: o de notificações, por meio da rede de saúde, de negligência ou abandono de pessoas de zero a 14 anos. Só em 2020, foram 1.534 casos reportados às autoridades segundo o portal Bi Saúde, do governo do Estado. Em alguns municípios, o site reúne também informações das principais instituições da rede de proteção fora da saúde, como conselhos tutelares e escolas.
Nos casos de negligência, o intervalo entre os registros é ainda menor: um caso foi reportado a cada cinco horas em 2020. O conceito usado é de situação de constante omissão, que impõe risco ao desenvolvimento da criança ou do adolescente.
A queda na comparação com 2019 nos casos de negligência foi de 28,5%, mas, assim como nos maus-tratos, os especialistas acreditam que haja apenas um acréscimo na subnotificação, e não uma redução real.
— Apenas 10% dos casos de violência chegam até o conhecimento da polícia, pensando na violência também contra criança e adolescente. Então esse número é totalmente subestimado, subnotificado. É muito maior o número de violência, apesar de os mecanismos de notificação tenham sido implementados na última década — afirma a psicóloga Rosangela Machado Moreira, do Departamento de Atenção Primária e Política em Saúde do Estado.
A escalada da violência
Doutor em psicologia e professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Mateus Levandowski afirma que os números acendem um alerta pelo crescimento gradativo da violência dos casos. Segundo ele, as situações notificadas são na maioria moderadas a graves, e não iniciais, o que significa que aquele caso potencialmente já resultou em danos mais severos às vítimas.
O especialista recorda o caso do menino Miguel dos Santos Rodrigues, sete anos, que a mãe admitiu ter espancado, dopado e jogado na água do Rio Tramandaí, em Imbé, em julho. Antes de ser morto, ele já vinha sendo submetido à tortura e a outras agressões, como revelaram vídeos obtidos na investigação da Polícia Civil.
— Sem prevenção e notificação, a violência é escalada. Difícil chegar nesse ponto que chegou em Imbé rapidamente. Ela vem de anos, vem de uma série de torturas emocional, psicológica e/ou sexual, até chegar nesse resultado de homicídio — argumenta.
O professor é autor de um estudo, junto com colegas do Núcleo de Saúde Mental, Cognição e Comportamento da UFPel, que aponta queda nas notificações de violência contra crianças e adolescentes durante a pandemia. Foi analisado por eles o intervalo de março a abril de 2020 — período de maior rigor no distanciamento social — com os mesmos meses em cinco anos anteriores. A conclusão é de que o impacto foi de 54% de redução nas notificações.
Para Levandowski, é "utópico erradicar a violência" contra criança e adolescente, mas ela pode ser reduzida a partir da observação de sinais que as vítimas dão:
— A gente costuma dizer que o autor é monstro, o louco, a louca, mas são pessoas. Às vezes é um vizinho legal, um chefe, um funcionário, uma funcionária adequada. Então, muitas vezes, a olho nu, no ritmo da vida, não vai se perceber quem é aquele abusador ou agressor, mas sim através de sinais da própria vítima. A grande questão é identificar algum dos sinais indicativos de que uma criança ou um adolescente está passando por uma situação de negligência ou abuso, e notificar.
Entre os sinais que crianças podem sugerir quando são vítimas de violência, está mudanças repentinas de comportamento, irritabilidade e marcas físicas. Confira o detalhamento no final desta reportagem.
Os desafios de quem protege
Um dos principais órgãos da rede de proteção, o Conselho Tutelar nem sempre é avisado dos casos de violência e, sem a presença maciça nas escolas durante quase um ano e meio, vê dificuldades em identificar que uma criança ou um adolescente esteja sendo de alguma forma agredido. No caso do menino Miguel, o conselho de Imbé disse não ter conhecimento de caso algum de violência envolvendo o garoto, e a escola onde ele estava matriculado jamais teve contato físico com a criança — a mãe buscava e devolvia as atividades.
Em Porto Alegre, conselheiros queixam-se de problemas de estrutura adequada para atender as crianças e os adolescentes. Um dos maiores desafios são problemas na rede de telefones, o principal meio para recebimento de denúncias. Na última sexta (6), GZH ligou para os telefones das 10 microrregiões do conselho da Capital: cinco estavam fora de funcionamento, uma chamou até cair, e quatro atenderam.
— A estrutura do Conselho Tutelar hoje é muito fragilizada. Eu posso te dar um exemplo que hoje estamos com um sério problema de telefones. A maioria dos nossos telefones não está funcionando. O telefone dá ocupado, mas está estragado — detalha Cleo Teixeira, coordenador-geral do Conselho Tutelar de Porto Alegre.
Também há relato de dificuldade na disponibilização de carros junto às empresas contratadas pela prefeitura e de computadores sem webcam para participação de reuniões. As duas questões são alvo de reuniões entre conselho, município e Ministério Público.
— Garantir direitos em Porto Alegre não é fácil — argumenta o conselheiro.
Em nota, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, que presta apoio administrativo às microrregiões do Conselho Tutelar, adiantou que abriu processo de compra de 39 telefones para sanar o problema — 25 com recursos próprios e 14 com emendas parlamentares. A pasta também afirmou que tem "tomado providências contínuas com o objetivo de fornecer local adequado de trabalho para a execução desse serviço essencial à comunidade". Também, que os problemas estruturais são históricos nas sedes.
O que deu certo
Apesar das dificuldades relatadas na capital gaúcha, especialistas e trabalhadores da rede ouvidos por GZH destacam a maior integração entre os órgãos como sinal de avanço na proteção a crianças e adolescentes.
A psicóloga Rosangela, do Departamento de Atenção Primária e Política em Saúde do Estado, destaca o trabalho de prevenção como fundamental para combater o problema.
— As ações nas escolas, que trazem a promoção da cultura da paz, que trazem a questão da violência, assim como as escolas que incluem as famílias e as comunidades como um todo. Essas ações são efetivas porque trabalham no viés da prevenção. Para alcançar esse pai e essa mãe, é preciso falar com eles, por essa aproximação feita pelas escolas — diz.
A profissional também recorda da Lei da Escuta Protegida, que é considerada marco ao normatizar e organizar o sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crimes. A legislação teve como berço o Rio Grande do Sul, seguindo projeto da 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre, e está em fase de implementação nos municípios.
— O principal ganho é que a criança e o adolescente não sofrem revitimização. Se organiza o fluxo da situação de violência. A rede conversa, encaminha o documento que sintetiza a situação de violência, fazendo com que não sofra mais violência repetindo aquilo.
A delegada Eliana Lopes, diretora do Deca, também diz que o maior tempo de diálogo sobre o assunto é um dos pontos positivos na luta contra a violência infantil.
— Precisamos fazer mais campanhas, mostrar para as pessoas que de fato isso existe, mostrar que não é invenção e que precisa ser inserido como política pública e missão institucional da polícia e do Ministério Público. Não digo só o Estado, mas a sociedade civil, os empresários, que abracem a causa e estimulem as denúncias. Isso possibilita que possamos apurar, indiciar e punir — complementa.
O professor autor de estudo sobre o tema concorda:
— É uma responsabilidade que nós, enquanto sociedade, temos que ter. A criança não é propriedade de ninguém. Ela é da nação, e todos nós temos responsabilidade por aquelas que estão ao nosso redor, que temos contato de alguma forma. Tendo um sinal, precisamos notificar, falar. É um dever de cuidado de todos nós.
Quais os sinais
Os especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que não há uma única forma de manifestação de sinais indicativos de violência. Acostumada a ouvir crianças e adolescentes vítimas, a delegada diretora da Deca aponta formas corriqueiras de manifestação:
- Mudanças de comportamento repentinas
- Agressividade
- Dificuldades para dormir
- Choro frequente
- Perda do interesse em brincar e estudar
- Medo de algumas pessoas, com manifestações físicas de enjoo e outros
- Marcas pelo corpo
- Introspecção
Como denunciar
- Disque Direitos Humanos: telefone 100 (ligação gratuita e anônima)
- Polícia Civil do RS por meio dos telefones: (51) 2131.5700 (Porto Alegre), 0800 642.6400 e (51) 98418.7814 (WhatsApp e Telegram)
- Brigada Militar: 190
- Telefones dos conselhos tutelares de cada cidade