Uma agricultora de Dom Feliciano, no sul do Estado, tornou-se ré por um crime que chocou o município. Elizamar de Moura Alves, 35 anos, está presa desde maio, após ter confessado a morte do marido e forjado por três meses seu desaparecimento. Em depoimento, admitiu ter arremessado Erni Pereira da Cunha, 42 anos, com quem era casada e tinha dois filhos, dentro de uma fornalha usada para secar fumo. Antes disso, teria dopado o produtor rural com sedativo. A mulher alega que era vítima de violência doméstica.
Elizamar foi denunciada pelo Ministério Público por homicídio duplamente qualificado. Isso porque, admitiu ter dopado o marido com medicamento tranquilizante antes de jogá-lo dentro do forno de fumo. No entendimento da acusação, houve uso de recurso que dificultou a defesa da vítima e emprego de meio cruel. Ao longo de três meses, os familiares de Erni buscaram por ele, sem saber que seu corpo havia sido incinerado. Motivo pelo qual a agricultora também responde por ocultação de cadáver — só foram encontrados fragmentos de ossos — e por falsidade ideológica, ao forjar o desaparecimento.
Ao longo do sumiço do agricultor, diferentes versões foram investigadas pela polícia. Uma das possibilidades era de que Erni tivesse ido embora para viver um caso extraconjugal. Mas pesava contra essa versão o fato de que ele não voltou a fazer contato com outros familiares, e a motocicleta que costumava usar para se deslocar ter permanecido em casa. Aos poucos, o comportamento da esposa começou a levantar suspeitas.
Enquanto parentes estavam empenhados nas buscas, Elizamar não demonstrava interesse na procura pelo paradeiro do marido. O casal tinha dois filhos, um jovem de 21 anos e uma adolescente de 16. Poucos dias após o sumiço, ela deixou a casa onde vivia com os filhos e se mudou para a residência de familiares nas proximidades. As dívidas de Erni foram pagas e uma nova motocicleta foi adquirida.
A polícia descobriu que no dia 14 de fevereiro, um domingo de Carnaval, enquanto Erni estava em um bar próximo da propriedade onde vivia, a mulher pesquisou na internet páginas que mostravam como matar alguém usando veneno. Aquele foi um indicativo de que ela poderia ter assassinado o companheiro. Por volta do meio-dia, ele retornou para casa e não foi mais encontrado com vida.
Após obter os mandados de prisão temporária da mulher e do filho do casal, a polícia deteve os dois. Quando foi ouvida pela polícia, a agricultora narrou o crime em detalhes, dizendo que misturou o sedativo ao suco de laranja do marido e depois, quando ele já estava desacordado, transportou seu corpo até a fornalha, que estava acesa. A mulher alegou que agiu sozinha e inocentou o filho. A queima do cadáver teria durado três dias.
Elizamar alegou que cometeu o crime porque era agredida pelo agricultor. Ela disse também que ele teria ameaçado os filhos. Quando ouvidos pela polícia, eles confirmaram as ameaças e agressões contra a mãe. Segundo a Polícia Civil, no entanto, não há registro de ocorrência por parte da mulher.
— Ela alega que sofria violência doméstica. Mas ficou no plano das alegações. Chama a atenção a crueldade, é muito raro esse tipo de crime, em que se coloca fogo na vítima — afirma o promotor Francisco Saldanha Lauenstein.
Outras possíveis motivações para o crime foram apontadas pela polícia, como o fato de que o agricultor costumava beber, e a descoberta de que ele matinha um caso extraconjugal. Em depoimento, o filho alegou que não estava em casa no momento do crime, mas que descobriu o corpo do pai depois e que não contou para proteger a mãe. Ele chegou a ser detido, mas foi liberado dias depois.
Elizamar continua presa, desde o dia 11 de maio, na Penitenciária Feminina de Guaíba. Segundo a Vara Criminal da Comarca de Camaquã, que abrange Dom Feliciano, o processo aguarda resposta da defesa, que deve ser apresentada no prazo de 10 dias – ela foi citada nessa segunda-feira (5).
— Nos chamou a atenção que, no mesmo município, em dezembro do ano passado outra esposa foi presa pela morte do marido. São dois fatos parecidos, num município pequeno — disse o promotor.
Perícia ajudou a esclarecer crime
Um dos desafios da apuração foi confirmar que dentro da fornalha havia fragmentos humanos, após a queima, que durou três dias. Num primeiro momento, não foi possível identificar nenhum vestígio. Por isso, foi necessário o auxílio do Instituto-Geral de Perícias (IGP). Foram recolhidos de dentro do forno 14 quilos de compostos de cinza e carvão.
— Foram necessárias mais de três horas de separação por técnica de imantação e peneiração para encontrar pequeníssimos fragmentos suspeitos – explica o perito criminal Wladimir Ribeiro Duarte, da 3ª Coordenadoria Regional de Perícias, que separou manualmente material.
Os fragmentos foram encaminhados para análises químicas, em parceria com a Universidade Federal de Pelotas e a Universidade Federal do Rio Grande, com o objetivo de determinar se eram mesmo ossos humanos. A microscopia eletrônica auxiliou a confirmar a suspeita. Segundo o perito, como os fragmentos passaram por processo de incineração, o material genético perdeu parte de sua estrutura natural. Para a Polícia Civil, a análise foi considerada fundamental para comprovar a materialidade dos crimes.
Caso semelhante no mesmo município
No município de cerca de 15 mil habitantes, outra mulher foi presa pela morte do companheiro. Em dezembro do ano passado, Roberto Carlos Garcia de Almeida, 42 anos, foi encontrado morto dentro de uma cacimba desativada, na localidade de Gaspar Simões, próximo de onde morava. O homem estava desaparecido havia cerca de três meses.
Antes da localização do corpo, segundo a polícia, a mulher se contradizia sobre os motivos que levaram ao sumiço do companheiro. Chegou a relatar que ele estava trabalhando fora ou até que teria sido morto e estava enterrado. A morte se confirmou em 14 de dezembro, quando o cadáver foi localizado.
— O corpo havia sido deixado a 20 metros da residência. Estava coberto com paus, pedras e areia, dentro dessa cacimba, a 1,8 metros de profundidade — explica o promotor.
A investigação concluiu que Roberto Carlos foi assassinado pela companheira, Luciane Justino, e o filho dela, Leandro Justino Vieira. Ambos tiveram prisão preventiva decretada pela Justiça. A mulher depois de ser presa, no fim de fevereiro, alegou que o filho matou o padrasto, após presenciar uma agressão. Ela disse que Almeida teria batido nela e lhe agredido com uma faca. Luciane também está detida na Penitenciária Feminina de Guaíba.
Segundo o promotor, a vítima foi morta por asfixia, com uso de uma sacola plástica, uma corda e uma camiseta. O Ministério Público denunciou os dois pelos crimes de homicídio qualificado e ocultação de cadáver. O enteado não foi localizado após ter a prisão decretada e passou a ser considerado foragido. O processo também aguarda manifestação da defesa e não tem audiência prevista.
Contrapontos
GZH entrou em contato com a defesa de Elizamar e aguarda retorno até o momento. Em depoimento à polícia, ela admitiu que matou o companheiro, mas alegou que agiu para se defender e proteger os filhos. No mês de maio, os advogados Marcos Antônio Hauser, Mikaela Schuch e Igor Roberto Freitas Garcia enviaram à reportagem nota, onde também afirmavam que ela sofria agressões físicas ao longo de anos. Confira a nota:
“Antes de adentramos na questão envolvendo a autoria do crime imputado a nossa cliente, Elizamar de Moura Alves, se faz necessário tecer um breve relato do seu histórico familiar, já que a motivação de seus atos perpassa necessariamente pela análise do contexto em que a mesma viveu a maior parte da sua vida.
A suspeita Elizamar vivia em união estável com a “vítima” Erni Pereira da Cunha há quase 21 anos. O casal se conheceu quando ela era ainda muito jovem, tinha apenas 14 anos. Em decorrência deste relacionamento amoroso a mesma engravidou, tendo então passado a morar com Erni, tanto é verdade que seu filho mais velho nasceu em 03/01/2001.
Desde que passou a conviver com Erni, a sra. Elizamar passou a ser vítima de agressões físicas, verbais e psicológicas, chegando até mesmo ao ponto de Erni ameaçar matar os filhos do casal, caso Elizamar registrasse queixas pelas agressões por ela sofridas. Tal conduta violenta e ameaçadora era prática comum por parte de Erni.
Em uma das oportunidades em que Elizamar foi vítima das agressões de Erni, o mesmo causou sérias lesões em sua clavícula, sendo que até hoje ela possui sequelas de tal agressão, estando ainda em pleno tratamento médico.
No dia dos fatos, Erni chegou em casa por volta do meio-dia, visivelmente embriagado, sendo que com o uso de uma faca que trazia na cintura teria ameaçado de morte o filho do casal, chamando-o de vagabundo e que não trabalhava. Após ameaçar o filho de morte, passou a disparar as mesmas ameaças contra Elizamar.
Foi neste cenário que, já cansada dos abusos físicos e psicológicos aos quais vinha sendo submetida há quase 21 anos, Elizamar decidiu pôr um fim a este histórico de violência ao qual ela e seus filhos estavam submetidos e, após ministrar dois comprimidos, valendo-se do fato de Erni ter caído em sono profundo, levou até o forno da estufa e colocou o corpo na fornalha.
É evidente que, prima facie, a conduta imputada a Elizamar pode parecer terrível, até mesmo macabra. Porém, é necessário entender o contexto em que o crime ocorreu para que se possa melhor avaliar a conduta de Elizamar.
Importante ressaltar que este histórico de abusos por ela relatados, vem confortado pelos relatos dos filhos, vizinhos e amigos de Elizamar e Erni.
Como se vê, apesar de estar sendo acusado de ter praticado um crime terrível, na verdade a grande vítima de violência é a própria Elizamar que durante quase 21 anos viu-se agredida, física e verbalmente, por seu companheiro, sem que nada pudesse fazer para pôr fim a essa situação, sem pôr em risco a integridade e a vida de seus filhos.
Em apertada síntese, eis o caso de Elizamar de Moura Alvez que ao contrário do que possa parecer, não é um monstro, mas sim mais uma vítima de violência doméstica, que cansada de ser agredida, ceifou a vida de seu algoz, porém o fez sob a excludente de ilicitude da legítima defesa, já que sua integridade física e sua vida, bem como e a de seus filhos estavam sob constante ameaça.”
No caso do assassinato Roberto Carlos Garcia de Almeida, GZH entrou em contato com o advogado Cristiano Pires de Oliveira, que representa Luciane. Por nota, ele afirmou que a cliente respondeu todas as questões da polícia e que aguarda o acesso ao conteúdo da investigação. Confira a manifestação na íntegra:
"A acusada em nenhum momento se furtou de responder às perguntas da polícia, auxiliando nas investigações, refere e se mantém que não tem nada com o fato, seus depoimentos se encontram no inquérito e tudo será esclarecido no processo.
Assumindo-se que os três pilares: contraditório, imparcialidade e proporcionalidade do direito processual penal serão resguardados como um arcabouço de direitos individuais que, se violados, inviabilizam a pretensão estatal punitiva, não são meros itinerários que podem ser percorridos de forma alternativa para se alcançar o destino vislumbrado. O delineamento legal garante por antecipação que o acusado(a), terrivelmente culpado ou divinamente inocente, não será imolado pelo poder estatal, mas devidamente inserido na ordem jurídica que o acusa de tê-la violado.
Ainda, com base no contraditório que é elemento ínsito ao sistema acusatório, aguarda acesso a todo o conteúdo dos procedimentos contrários à investigada/acusada, que não teve acesso ainda."