Em 15 de fevereiro, Ilsa Cunha da Silva, 44 anos, recebeu telefonema da cunhada, esposa do irmão Erni Pereira da Cunha, 42 anos. A mulher, que vivia em Dom Feliciano, no sul do Rio Grande do Sul, contou que o marido havia ido embora de casa. A partir dali, sem novas informações sobre o paradeiro do agricultor, familiares iniciaram buscas que só se encerraram quase três meses depois, com a confissão de um crime.
Presa durante a investigação, em 11 de maio, Elizamar Moura, 35 anos, admitiu ter dopado o marido e arremessado seu corpo, ainda com vida, em uma fornalha usada para secar tabaco. A mulher alegou que cometeu o crime porque era vítima de violência doméstica, e Erni teria ameaçado os filhos.
A polícia aguarda o resultado de uma perícia realizada no forno, onde ela teria queimado a vítima por três dias, para concluir inquérito. Um filho do casal, de 21 anos, também foi preso de forma temporária, mas foi libertado dias depois. Até agora, a polícia não tem evidências de que ele tenha participado da morte do pai – o jovem nega.
O crime teria acontecido horas antes do telefonema para a irmã do agricultor. No dia 14 de fevereiro, um domingo de Carnaval, Erni teria ido durante a manhã até um bar próximo à propriedade, em Linha Colônia Nova. Teria retornado para casa, onde vivia com a esposa, um filho de 21 anos e a filha de 16 anos, por volta do meio-dia. Depois disso, foram apresentadas diferentes versões sobre o que teria acontecido.
No início da tarde da segunda-feira, dia 15, Ilsa recebeu a ligação da cunhada. Ela dizia que na volta do bar, o marido teria se arrumado e ido embora de casa caminhando. Alegou que durante a noite recebeu uma mensagem, onde o marido contava que tinha ido embora para ser feliz. Na quarta-feira, dia 17 de fevereiro, o caso foi registrado na Polícia Civil.
No início, a polícia tratava o caso como desaparecimento. Passou a apurar diferentes hipóteses para o sumiço, que não necessariamente envolviam crime. Uma das possibilidades era de que o agricultor tivesse ido embora para viver um caso extraconjugal. Mas pesava contra essa versão o fato de que ele não voltou a fazer contato com outros familiares, e a motocicleta que costumava usar para se deslocar ter permanecido em casa.
Além disso, Erni havia supostamente ido embora a pé, sem levar nada, nem mesmo as roupas. A mulher dizia que ele havia recebido uma quantia em dinheiro antes do sumiço. Essa informação levou a polícia a apurar também um possível assalto que tivesse terminado com a morte da vítima, um latrocínio. Os irmãos chegaram a suspeitar até mesmo de suicídio. Reviraram matagais no entorno da propriedade rural, mas não encontraram vestígios.
Aos poucos, o comportamento da esposa começou a levantar suspeitas. Enquanto parentes estavam empenhados nas buscas, a mulher não demonstrava interesse na procura pelo paradeiro do marido. Poucos dias após o sumiço, ela deixou a casa onde vivia com os filhos e se mudou para a residência de familiares nas proximidades. As dívidas de Erni foram pagas e uma nova motocicleta foi adquirida.
— O comportamento indicava que sabiam que ele não ia voltar — explica a delegada Vivian Sander Duarte.
A polícia ouvia vizinhos, amigos e familiares, na tentativa de entender o perfil do desaparecido. Em paralelo, a investigação descobriu um ponto relevante. Na manhã de 14 de fevereiro, no horário no qual o marido estava no bar, Elizamar teria usado o celular para pesquisar na internet páginas que mostravam como matar alguém usando veneno. Para a polícia, aquele foi mais um indicativo de que Erni poderia ter sido vítima de homicídio.
Confissão
Após obter os mandados de prisão temporária da mulher e do filho do casal, a polícia deteve os dois. No momento da prisão, Elizamar apontou nova versão para o que aconteceu. A agricultora disse que jogou o marido desacordado dentro de uma fornalha acesa, após dopá-lo com Diazepam – sedativo que ela usava para dormir. O medicamento teria sido misturado a um copo de suco de laranja.
A mulher alega que agiu sozinha e inocenta o filho de qualquer participação. Ela disse que só ela e o marido estavam em casa no momento do crime e que teria arrastado o corpo dele até o forno, que era usado para secar tabaco. A queima do cadáver teria durado três dias. Como motivação para o crime, afirmou que era vítima de constantes agressões e ameaças – os dois mantinham relacionamento havia mais de duas décadas.
— Ela disse que ele teria ameaçado os filhos e que isso ela não aceitava. Alega que queria proteger os filhos — diz a delegada.
Quando ouvidos pela polícia, os filhos confirmaram as ameaças e agressões. Não há registro de ocorrência por parte da mulher na polícia, que ainda apura se o crime não pode ter tido outra motivação. Entre as possibilidades, está o fato de que o agricultor costumava beber, e a mulher teria descoberto recentemente um caso extraconjugal. A motivação financeira também é apurada, embora se trate de uma família humilde.
A polícia ainda apura a versão apresentada por ela, de que agiu sozinha. Em depoimento, segundo a delegada, o filho alegou que não estava em casa no momento do crime, mas que descobriu o corpo do pai depois e que não contou para proteger a mãe.
— Ele disse que foi alimentar o fogo da fornalha e viu o corpo do pai. Isso ele admite — diz a delegada.
A perícia está analisando materiais recolhidos na fornalha para verificar se é possível identificar DNA e comparar com o de familiares. A polícia pediu prorrogação do prazo da investigação, que deveria ser concluída nesta semana, mas aguarda decisão da Justiça.
A agricultora teve a prisão temporária convertida em preventiva e segue detida na Penitenciária Feminina de Guaíba. Ela deve responder por homicídio qualificado pelo emprego de fogo e recurso que impossibilitou a defesa da vítima, além da ocultação de cadáver.
Última visita
De uma família de agricultores, de cinco irmãos, Erni morou durante toda a vida no interior do município de Dom Feliciano, de onde era natural. Vivia do cultivo do tabaco, milho e feijão na mesma propriedade de seis hectares onde acabou morto. A rotina, segundo a família, dividia-se entre o trabalho e as idas a um bar próximo de casa nas horas de folga. O agricultor teria completado 43 anos no dia 12 de março, quando já havia desaparecido.
— Não sei como alguém pode fazer uma coisa dessas. Queremos justiça. Ele não merecia isso. Ela ligou para minha mãe, dizendo que ele tinha sumido — diz a irmã, Ilsa.
Aos 76 anos e acamada, por causa de uma série de doenças, entre elas um problema cardíaco, a mãe de Erni não sabe sobre a morte do filho. Por orientação médica, os familiares decidiram não contar. A última vez que o agricultor esteve com a idosa foi em 22 de novembro, quando ela fez aniversário.
— Parecia tudo bem. Ele estava tranquilo, feliz. Ela (esposa) não veio. Disse que tinha fogo na estufa e ficou cuidando — relata Ilsa, que mora em Encruzilhada do Sul, no Vale do Rio Pardo, com a mãe.
A família não compreende o que pode ter motivado o crime e não acredita que a mulher tenha conseguido sozinha arrastar o corpo até a fornalha. Segundo a irmã, o casal parecia viver uma relação tranquila.
— Ele bebia realmente, mas não era agressivo. Não tinha inimizade. Fazia de tudo para os filhos. Não tinham bens, nem nada. Viveu a vida toda no interior, mal conhecia Dom Feliciano. Ninguém imaginava que ela tivesse feito isso. É uma tristeza muito grande, nem o corpo tem para se despedir — lamenta a irmã.
Contraponto
Procurados, os advogados Marcos Antônio Hauser, Mikaela Schuch e Igor Roberto Freitas Garcia, que defendem Elizamar, enviaram nota a GZH. Confira na íntegra:
De antemão queremos agradecer pela oportunidade de oferecer o contraponto à defesa da suspeita. Tal conduta denota um compromisso com a seriedade jornalística que se espera dos meios de comunicação, em especial se tratando de um jornal de tamanha tradição e alcance junto à comunidade gaúcha.
Antes de adentramos na questão envolvendo a autoria do crime imputado a nossa cliente, Elizamar de Moura Alves, se faz necessário tecer um breve relato do seu histórico familiar, já que a motivação de seus atos perpassa necessariamente pela análise do contexto em que a mesma viveu a maior parte da sua vida.
A suspeita Elizamar, vivia em união estável com a “vítima” Erni Pereira da Cunha há quase 21 anos. O casal se conheceu quando ela era ainda muito jovem, tinha apenas 14 anos. Em decorrência deste relacionamento amoroso a mesma engravidou, tendo então passado a morar com Erni, tanto é verdade que seu filho mais velho nasceu em 03/01/2001.
Desde que passou a conviver com Erni, a sra. Elizamar passou a ser vítima de agressões físicas, verbais e psicológicas, chegando até mesmo ao ponto de Erni ameaçar matar os filhos do casal, caso Elizamar registrasse queixas pelas agressões por ela sofridas. Tal conduta violenta e ameaçadora era prática comum por parte de Erni.
Em uma das oportunidades em que Elizamara foi vítima das agressões de Erni, o mesmo causou sérias lesões em sua clavícula, sendo que até hoje ela possui sequelas de tal agressão, estando ainda em pleno tratamento médico.
No dia dos fatos, Erni chegou em casa por volta do meio, visivelmente embriagado, sendo que com o uso de uma faca que trazia na cintura teria ameaçado de morte o filho do casal, chamando-o de vagabundo e que não trabalhava. Após ameaçaro filho de morte, passou a disparar as mesmas ameaças contra Elizamara.
Foi neste cenário que, já cansada dos abusos físicos e psicológicos aos quais vinha sendo submetida há quase 21 anos, Elizamara decidiu por um fim a este histórico de violência ao qual ela e seus filhos estavam submetidos e, após ministrar dois comprimidos de Diazepam, valendo-se do fato de Erni ter caído em sono profundo, levou até o forno da estufa e colocou o corpo na fornalha.
É evidente que, prima facie, a conduta imputada a Elizamara pode parecer terrível, até mesmo macabra. Porém, é necessário entender o contexto em que o crime ocorreu para que se possa melhor avaliar a conduta de Elizamara.
Importante ressaltar que este histórico de abusos por ela relatados, vem confortado pelos relatos dos filhos, vizinhos e amigos de Elizamara e Erni.
Como se vê, apesar de estar sendo acusado de ter praticado um crime terrível, na verdade a grande vítima de violência é a própria Elizamara que durante quase 21 anos viu-se agredida, física e verbalmente, por seu companheiro, sem que nada pudesse fazer para pôr fim a essa situação, sem pôr em risco a integridade e a vida seus filhos.
Em apertada síntese, eis o caso de Elizamara de Moura Alvez que ao contrário do que possa parecer, não é um monstro, mas sim mais uma vítima de violência doméstica, que cansada de ser agredida, ceifou a vida de seu algoz, porém o fez sob a excludente de ilicitude da legítima defesa, já que sua integridade física e sua vida, bem como e a de seus filhos estavam sob constante ameaça.
Por fim, informamos que nesta data impetramos Habeas Corpus junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, porém, ainda não houve manifestação do Poder Judiciário.